domingo, julho 23, 2006

O porquê dos juros altos e o discurso da esquerda

Rall


É ingenuidade imaginar que só os banqueiros são beneficiados com os juros altos. Todo setor produtivo como também o comércio e serviços, se beneficiam ao vender a crédito de duas maneiras: 1. aumentando as vendas, 2. aumentando seus lucros cobrando juros exorbitantes. Hoje as empresas ou possuem seus próprios bancos ou financeiras ou trabalham em parceria com o setor financeiro, beneficiando-se do mesmo jeito.

Suspeito que esses mecanismos são utilizados para compensar a baixa rentabilidade oferecida pela economia real. É uma forma disfarçada de manter os preços altos, não deixa de não ser uma forma de manter inflação para uma camada da população que só pode adquirir bens à prestação.

Com os juros altos, ganha os bancos, ganha o comércio e a indústria e a parcela privilegiada da população que pode comprar à vista, com descontos, e ainda investir suas sobras na ciranda financeira. Em resumo: os juros altos são uma forma de transferir renda dos menos privilegiados para os mais privilegiados, mecanismo nada novo em nosso capitalismo tupiniquim.

Isso exige que o Estado sinalize para o mercado que os juros vão se manter em determinados patamares. Por outro lado, se os juros caem por ação do Banco Central e ameaça os rendimentos dos privilegiados, “a mão invisível” do mercado reage aumentando a inflação como forma de manter os rendimentos dos agentes econômicos.

A grita de setores do empresariado, geralmente os mais endividados ou os que estão fora da economia de escala, diz respeito aos seus empréstimos e não o que repassam para os consumidores na forma de juros altos. Ninguém abre mão de seus lucros porque o vizinho está fechando as portas ou o outro está a morrer de fome. Não há discurso moral que reverta essa lógica irracional.

Além das camadas da população que antes não tinham como se salvar da inflação e agora dos juros altos, a conta é paga também pelo Estado que para isso penaliza as camadas não privilegiadas com seus impostos desiguais. Os desfavorecidos são achacados duas vezes: pelos altos juros do mercado e pelos impostos do governo. Eis aí uma hipótese para ajudar a explicar a enorme concentração de renda nesse país.

Ao contrário do que muitos imaginam, os juros altos talvez seja a bolha que movimenta a ilha de prosperidade cercada pelo mar de miséria que ameaça inunda-la. Apesar dos discursos contrários, pouco pode fazer os agentes econômicos à não ser tirar proveito do que lhe é oferecido nessas circunstâncias, agem como “sujeito automático” na busca do lucro. Não tem ou não precisam ter clara consciência do fenômeno que eles mesmos produzem, mas que lhes é estranho, ao defender seus interesses. Desvendar os mistérios da economia não é seu dever. Se assim não fosse teriam a economia sobre as rédeas.

O discurso da esquerda radical, contra a especulação financeira que esfola o capital produtivo e o trabalho, é no mínimo ingênuo. Aí tem seu ponto de encontro com a direita autoritária de tinturas nacionalista. Tal discurso aparentemente justo, alimenta o populismo de toda espécie, nada muda e geralmente conduz ao sectarismo sem saída. Nesse momento, só a crítica categorial aos fundamentos da sociedade capitalista é realista.
23.07.2006

sexta-feira, julho 14, 2006

O FASCISMO E O MUNDO CONTEMPORÂNEO

Rall


Acho bastante pertinente a discussão sobre o fascismo desencadeado pelo referendo das armas e a análise dos discursos que trazem em seu conteúdo elementos do mesmo, num momento em que manifestações autoritárias são mascaradas pelos instrumentos da democracia. Essa é uma questão que não se esgota fácil e muitas vezes deixada de lado pelas correntes políticas que se dizem de esquerda.

Tenho dificuldade de entender o fenômeno sem uma crítica radical a sociedade burguesa. No entanto, a questão parece não se esgotar aí. Se assim fosse, não existiriam resistências ao discurso fascista ou a condutas caracterizadas como tal. Aí eu me pergunto: o que definimos como fascismo nos tempos atuais que não sejam os xingamentos? Será que o fascismo não é um fenômeno mais amplo do que normalmente caracterizamos em nossa crítica? Uma coisa é certa, a sociedade burguesa em crise tem se tornado cada vez mais intolerante. É intolerante com os pobres que em sua marginalidade são confundidos com bandidos; extremamente intolerante com qualquer tipo de situação classificada como “delito” pelas normas jurídicas e, se flagrado, o indivíduo é jogado na prisão, trem para o inferno sem passagem de retorno; intolerante com os jovens que ao não se enquadrarem nos padrões tidos como “normais”, são acusados de delinqüente e trancafiados nas Febens da vida que tão bem lhes ensinam os caminhos da violência; se hoje um jovem fizer o que fazíamos em nossa juventude está perdido; intolerante com os desempregados que vistos pelo olho assustado dos que estão provisoriamente empregados são classificados como vagabundos. (Moro num prédio de classe média, onde cada vez mais jovens se formam e ficam em casa por falta de emprego. É notória a censura a que são submetidos pelos moradores e até mesmo pelos familiares. Nas conversas estão sempre tentando se justificar como se carregassem a culpa do maior dos pecados). Intolerante com os idosos que por não serem mais produtivos são levados sem piedade para morrer (ou serem mortos?) nos albergues e asilos; intolerante com a mulher vítima de todo tipo de violência; com os enfermos que em sua fragilidade deixam seus corpos serem violados sem nenhuma reação por uma medicina mercantilizada. Em fim, uma intolerância disseminada, principalmente com aqueles que não servem à sociedade do trabalho.

Muitas vezes, a intolerância gerada nos grupos sociais é normatizada pelo Estado em nome da segurança e da defesa do cidadão, o que é grave. Quando na ditadura a intolerância era do Estado, exercida contra os direitos privados, gerava resistências. Hoje, os indivíduos amedrontados, abrem mão das liberdades em troca de uma suposta segurança. A esmagadora vitória do “não” no referendo, já vem sendo interpretada pelos arautos da segurança, como um clamor para que o Estado prenda mais, mate mais... Não é à frente do “não”, que embalada pela vitória, já se fala em um outro plebiscito, agora para aprovar a pena de morte?

A intolerância, uma manifestação do medo e do autoritarismo que grassa a sociedade, apesar de ser um dos componentes do fascismo, por si só não o define, penso eu. O nazi/fascismo surgiu numa Europa dilacerada, assustada com as revoluções “socialistas” e com o movimento operário do pós-guerra, numa Alemanha humilhada, com dívidas de guerra e milhares de desempregados, muitos deles soldados desmobilizados das frentes de batalha.Tinha seus símbolos, suas bandeiras, seus modelos ideais de uma nação de “raça pura” que em nome do nacionalismo, componente importante na trama delirante, tentava chacoalhar a população derrotada, transformando-a em massa para seus objetivos. Era também uma forma de mobilização para a superexploração em nome do dever com a nação. O trabalho, ou melhor, o sacrifício no trabalho, apresentado como nobre, digno de uma raça sem mistura, tinha um papel central no discurso nazi/fascista, estava aí um dos seus pontos de encontro com o stalinismo. Não fazia diferença se o trabalho era na fábrica ou no front, se si perdia vidas com corpos perfurados à balas ou levado ao exaustão nas fábricas militarizadas. Morrer de uma ou outra forma era “passar da Alemanha temporal à Alemanha eterna”.

A compulsão de superar tudo e a todos, interna e externamente, era um dever do cidadão ariano. O outro, um obstáculo, tinha que ser eliminado. Daí a guerra, o anti-semitismo, o extermínio dos judeus e de outros incapazes que “sabotavam com seus atos impuros o potencial do povo alemão”.

O que há em comum entre essa competição extrema, que leva a destruição dos competidores e o capitalismo atual? Na Alemanha nazista os fortes mereciam vencer, aos fracos o descarte. Quais as diferenças e quais os pontos em comum entre a sociedade atual, que na sua insana concorrência exclui sem piedade os não ajustados ao mercado, e a Alemanha nazista que cultuava a morte, vista como desfecho natural para os perdedores, os mentalmente inferiores ou para aqueles que obstaculizavam o ressurgimento da nação alemã formada por um povo puro e vencedor? A morte para os fortes, aqueles que tombam destemidos por esse paranóico ideal, tinha um significado diferente, era a glória. Para esses, as homenagens póstumas, as medalhas do terceiro Reich, a eternidade; para àqueles uma morte que não deixasse vestígios das suas impurezas sobre o sagrado território, os fornos crematórios. A realização e ao mesmo tempo a destruição de obras grandiosas, não importa o sacrifício humano, presentes nos cálculos de Hitler, não são parte da política do capitalismo atual das grandes corporações feita sem disparar um tiro?

As condições sociais atuais, a violência dos grupos mafiosos e a violência institucional, o rancor de uma classe média empobrecida, o medo que se espalha, reforçado pela forma como os meios de comunicação manipulam as informações sobre a violência; o poder desmedido e sem controle das grandes corporações que agem automaticamente em busca de sempre maximizar os lucros, com custos altíssimos para natureza e o homem; um Estado corrompido e preso aos ditames da economia globalizada, tudo isso são “meios de cultura” apropriados para barbárie de toda espécie que brota no cotidiano sem a resistência necessária.


27.10.2005

terça-feira, julho 11, 2006

Um prego no caixão das leis trabalhistas com direito a réquiem tocado por sindicalistas

Rall


Li nesses dias, que chorões sindicalistas, reclamavam da “maldade” contra os trabalhadores que foi a aprovação no congresso da “MP do Bem”, agora sancionada por outro sindicalista Presidente da República. É o choro depois do leite derramado. Coisa para inglês vê como se diz na gíria. O que não se diz é que o artigo 129, do qual reclamavam de araque, já vinha sendo praticado pelo mercado, sem nenhum obstáculo. O processo de terceirização, que há muito vem expulsando das relações trabalhistas a CLT, já não encontrava resistência nos tribunais do trabalho e nos sindicatos, mesmo quando burla a lei tentando mascarar com artifícios o vínculo trabalhista. Antes eram criadas as cooperativas de trabalho, na maioria das vezes pelo próprio empregador, para fugir da legislação. Agora, nem isso necessita: com a “MP do Bem” (brincam até com o nome), promovem o empregado a patrão de si mesmo, dispensa-se os intermediários.

A porta que já vinha sendo arrombada há tempo, abre-se de vez para o capitalismo do vale tudo. Agora todos já podem trabalhar 15-20 horas por dia, produzir sua mais valia absoluta e até se auto-imolar em oferenda ao deus trabalho sem que os tribunais encham o saco. Já não há mais “entulhos” como diz os juristas da modernidade, o caminho foi limpo, todos estão livres para correr alegremente em busca do altar dos sacrifícios.

A extensão dessa medida que aparentemente é dirigida à mão-de-obra especializada e cara será sentida muito mais profundamente do que se imagina. Em poucos anos vamos saber quantos perderam o pouco de direito que lhes davam a condição de ter “carteira assinada”. Os sindicatos que no esvaziamento de suas funções não sabem mais o que fazer para agradar, a não ser distribuir brindes imitando mal os mais lamentáveis espetáculos, aceleram de ladeira abaixo sua queda e se confunde cada vez mais com os interesses do capital.

A renda média do trabalhador em São Paulo despencou 31% em dez anos, entre 95 e 2005, segundo pesquisa do Dieese. Essa situação, que tende a se agravar, não deve ser diferente para resto do país onde os salários são mais baixos. Mesmo com crescimento econômico o desemprego persiste, e todas as pesquisas têm mostrado que a maioria dos empregos criados são de baixos salários e gerados na área de serviços, o que mostra a precarização e a incapacidade da economia de absorver satisfatoriamente força de trabalho disponível com a expansão dos mercados. Trocando em miúdos: o aumento da produtividade, com a utilização das novas tecnologias, movida pela concorrência entre as empresas, têm substituído o trabalho humano por máquinas, não permitindo que a economia, mesmo em alta, crie empregos suficientes capazes de absorver a força de trabalho disponível, tornando-a, em grande medida, supérflua.

Esse é o grande paradoxo de nosso século que os governos, os sindicatos, políticos e as instituições de um modo geral preferem “resolver” com um discurso demagógico e mentiroso da geração de novos postos de trabalho. O problema é sabido, mas sua discussão é negada pelo que pode engendrar. Busca-se saídas mais fáceis para garantir a acumulação com custos sociais altíssimos que só agravam a crise. A MP do Bem faz parte dessa realidade e novas medidas de desregulamentação, tidas como realistas, tendem aparecer novamente, deixando sem peias o mercado para o movimento do capital que em seus estertores sobrevive à custa de bolhas. Mas quando lhe faltar o ar que artificialmente respira, injetado muitas vezes com ajuda daqueles que o condena, espero que requiscat in pace.


21.05.2005

domingo, julho 09, 2006

O CIRCUITO ASIÁTICO DA ECONOMIA MUNDIAL

Como a economia mundial se sustenta em tempos de crise da valorização do capital

Rall


A grande imprensa tem noticiado com freqüência os alertas feitos a China pelas instituições financeiras mundiais para que deixe o yuan (moeda chinesa) flutuar por encontrar-se artificialmente subvalorizado, como medida para reduzir o déficit em conta corrente americano, financiado principalmente, pelos superávits dos países asiáticos. Ora, ao mesmo tempo em que pedem a China mais equilíbrio de sua moeda em relação ao dólar, a economia americana necessita desesperadamente do dinheiro gerado nos superávits chinês. Essa relação de dependência entre as duas economias é que costumam chamar de circuito asiático.

Como funciona? Os países do leste asiático, principalmente a China, produzem mercadorias, com preços bastante competitivos, que são absorvidas por ávidos consumidores americanos. Isso tem gerado um enorme superávit nesses países em relação a maior economia do mundo, dinheiro que retorna barato ao mercado americano na forma de investimentos em papéis com garantias do tesouro. Esse fluxo de mercadorias e capitais é fundamental para o funcionamento da economia dos EUA e o crescimento da economia chinesa, com reflexo no resto do mundo.

Qual a conseqüência disso para indústria? A grande maioria dos produtos exportados pela China sai das empresas americanas aí instaladas, que são beneficiadas pelos baixos salários pagos (em média menos de 1/10 do valor recebido pelo trabalhador americano, quando comparados todos salários da cadeia produtiva). A lógica do capital é da valorização do valor, se no país onde dançam os dragões essa façanha é possível vamos à China. Isso gera um fenômeno um tanto estranho para alguns: nos dois paises, apesar do crescimento econômico, cai o emprego na indústria pelo aumento da produtividade, e ainda, nos EUA, pela fuga de capitais da produção em busca de uma maior rentabilidade, na China pelo impacto tecnológico em uma economia de uso extensivo de força de trabalho.

E quanto ao fluxo de capitais? O dinheiro que retorna ao mercado americano não encontra na produção sua melhor aplicação por ser pouco rentável, a não ser na aquisição estratégica de empresas. Ao aumentar a liquidez, pressiona os juros a longo prazo para baixo, alimentando a especulação no mercado financeiro, nas bolsas e no mercado imobiliário, fazendo expandir com isso as bolhas que por sua vez sustentam artificialmente o consumo, beneficiando as importações, principalmente do leste asiático.

Se o superávit chinês e de outros países não fossem tão importante para expansão do capital fictício, que movimenta a economia mundial a partir dos grandes centros, garantindo o que tem sido chamado no capitalismo-cassino de “efeito riqueza”, em outras palavras, capital-dinheiro destituído de substância, não haveria tanta defesa desse desequilíbrio por economistas de prestígio no sistema. Divergências à parte, todos estão de acordo que esse ainda é o caminho para manter o consumo aquecido.

Saídas dessa encruzilhada, sem apostar em novas bolhas, são dolorosas e passariam necessariamente pela recessão, com a redução do consumo mundial que atingiria em cheio a China e outros países, pois veriam fechados os sorvedouros de seus produtos. A conseqüência da redução dos superávits seria a diminuição do fluxo do dinheiro asiático para o mercado americano, que agravaria mais ainda a recessão e poderia levar a um desequilíbrio de proporções inéditas no orçamento deficitário do governo dos EUA, pela queda da arrecadação e pela redução da entrada de recursos externos.

Numa convergência de interesses, o governo Bush jogou bilhões de dólares no mercado, com os cortes de impostos e juros baixos, que tem sido torrado num consumo perdulário e em investimentos não produtivos. O rombo de quase quinhentos bilhões de dólares no orçamento, agravado com as despesas de guerra, e valor semelhante em conta corrente, para serem financiados necessitam dos recursos dos investidores estrangeiros. Qualquer medida que leve a redução dos superávits de parte dos países desse circuito, teria repercussão imediata na entrada de capitais.

Entre as muitas saídas pensadas para reduzir os déficits está o aumento de impostos e dos juros numa velocidade maior, que ao enxugar o dinheiro circulante, atingiria negativamente o consumo e sem dúvida faria economia cair em recessão, com as implicações já citadas. A combinação de todas medidas teria efeitos semelhantes. Apesar dos esperneio, a posição dos gerentes da crise e de alguns analistas é que a margem de manobra é apertada, um reconhecimento que pouco pode ser feito a não ser administrar a crise e apostar no surgimento de novas bolhas ou rezar para que as existentes sejam infinitas, posição que se ajusta muito bem ao raciocínio dos operadores dos mercados de papéis, distantes da economia real.

O circuito asiático de fluxos de mercadorias e capitais para os EUA é parte da mega simulação encontrada para alimentar a criação de capital fictício e manter alto o consumo sustentado por bolhas. Resta saber se o provável estouro da bolha do mercado imobiliário, que teve origem nos EUA ainda no final dos anos 90 e se expandiu para o resto do mundo, vai permitir o surgimento de outras com o sopro milagroso capital financeiro. Acreditam alguns críticos que após o estouro da bolha nas bolsas em 2001, não totalmente esvaziada, e o possível estouro da bolha imobiliária, o campo se estreita para o crescimento de outras. Outros, porém, acham que o capitalismo está sendo impulsionado por fenômenos que apontam para um novo paradigma, também ouvimos essa conversa antes do desastre das bolsas.

A expansão desse fenômeno parece ser a tendência, acompanhado de um certo “efeito sanfona” na economia de bolhas, ou seja, quando uma esvazia surge outra de maior amplitude em um tempo mais curto, gerando demandas, mas prometendo no seu ocaso um estrago maior do que sua predecessora. O que alguns analistas não conseguem enxergar, por se ocuparem com mundo da aparência, é que, o que chega a superfície são manifestações da crise da valorização do capital, da “alma que move a produção capitalista” (Marx).
04.07.2005