terça-feira, junho 24, 2008

O fantasma de 29 e a crise atual

Rall


A inflação antes restrita a alguns países, torna-se um fenômeno mundial e volta a assustar. A sombra da crise de 29, que arrastou o mundo à carnificina da segunda guerra mundial e parecia esquecida, assume contornos bizarros no horizonte e já é avistada com assombro por alguns. E é ela bem mais real do que os desejos de muitos analistas e governantes. Na velocidade em que vem se formando o capital fictício a partir dos anos 80, apesar dos mecanismos de contenção, chegaria o momento que este transbordaria e mostraria sua outra face: a inflação. Tão pouco esperada para um momento em que a economia americana e mundial dá sinais de desaceleração, a inflação tem vários determinantes, mas vamos nos ater ao que achamos no momento importante.

O dinheiro excedente, gerado de diversas formas, principalmente nas bolhas e nas máquinas dos governos para ser generosamente distribuído, deve ser levado em consideração quando se fala em retomada da inflação. Vale uma ressalva antes de prosseguirmos: com a terceira revolução industrial, a produção atual de mercadoria depende da formação de capital fictício. Na fórmula clássica D-M-D’, mais dinheiro (D’) só é possível por ser a força de trabalho uma mercadoria capaz de produzir mais valor. Com a automação da produção que tende a aumentar o capital fixo e a dispensar cada vez mais trabalho do processo produtivo, a formação de mais dinheiro (D’) como expressão da “valorização do valor” entra em crise. Daí o surgimento das “máquinas” de produção de capital fictício na economia mundial que não se restringem à impressão de papel-moeda pelos governos. Foram se constituindo mecanismos sofisticados de geração dessa forma de capital, que aparentam uma relação mais direta com a produção de mercadorias do que as impressoras das casas de moedas.

Um desses mecanismos é a relação econômica dos EUA com os países asiáticos, principalmente China e Japão, onde o enorme déficit comercial americano é coberto com uma montanha de dinheiro barato vindo desses países. Outros são os juros negativos praticados pelo Fed (e outros bancos centrais), os subsídios e cortes de impostos, medidas sempre tomadas todas as vezes que a economia entra ou corre o risco de recessão. O volume de capital que passa a circular a partir daí, ofertado a longo prazo as famílias e as empresas, ultrapassa a capacidade de consumo e investimentos, permitindo liquidez para especulação de toda ordem e formação de bolhas em vários setores da economia. Essas bolhas, ao devolverem mais dinheiro mesmo que fictício ao mercado, realimentam o consumo e os investimentos, aumentando também o tamanho e a possibilidade de outras, numa crescente bola de neve que parece não ter fim. Mas, um bom observador verá que a ascensão das bolhas e o crescimento econômico a ela acoplada, são sempre acompanhados de estouros e da queda da economia.

Esse parece ter sido o meio encontrado, pela economia global, para superar as dificuldades geradas com a crise do trabalho na era da revolução tecnológica, que leva a paralisia na formação de capital, entendido como trabalho morto acumulado. Não é um processo linear. Na competição sem limites por mercados, o capital está sempre em movimento na busca de novos espaços que lhes sejam favoráveis na produção de mercadorias. Por outro lado, mesmo com o “efeito bolha”, empregos não são criados em quantidade suficiente capazes de compensar o fechamento de postos de trabalho produtivos pela introdução de novas tecnologias, que pode ser indiretamente medido pelo grande aumento da produtividade do trabalho observado nas últimas décadas em todo mundo. Esse fenômeno não impede que ondas de empregos emerjam em certos momentos do capitalismo mundial como observado até recentemente. São empregos, em grande parte, improdutivos no sentido de não gerarem mais valia, e empregos precarizados como indica a estabilidade ou mesmo a queda da massa salarial na maioria dos países.

Se por um lado essa enorme quantidade de dinheiro supérfluo empurra para frente a possibilidade de uma crise sem retorno da forma capitalista de produção, quando não devidamente contido pelos vários mecanismos financeiros pode levar a inflação, como agora observamos após o estouro da bolha imobiliária que obrigou os capitais se deslocarem para ativos reais, inflando aos céus os preços das commodities metálicas, químicas (petróleo e derivados) e de alimentos. Situação agravada com os juros negativos, principalmente nos EUA e Japão, e pela ação dos bancos mundiais dos países ditos desenvolvidos que despejaram no mercado mais de um trilhão de dólares sem, no entanto, conseguir reverter a crise do sistema financeiro nem aquecer, como se esperava, suas economias. Os velhos remédios keinesianos ou monetaristas já não funcionam mais. Juros baixos e mais dinheiro para o consumo na situação atual significa mais inflação; arrocho monetário e juros altos mais recessão sem a garantia da queda dos preços. É a crise autonomizada dando sinais de sua verdadeira dimensão, mostrando que não se deixa facilmente controlar pelas vontades das elites e dos governos.


24.06.2008

quarta-feira, junho 11, 2008

NEM QUE TODOS MORRAM DE FOME...

Rall


O estouro da bolha imobiliária e a fuga dos capitais das bolsas de valores têm direcionado o dinheiro para as commodities com repercussão nos preços do petróleo, metais e alimentos. É claro que o redirecionamento da produção mundial de mercadorias para países como a China, Índia e mesmo o Brasil entre outros, tem aumentado o consumo de commodities. Mas, vale ressalvar, que pelo menos China e Índia, vem apresentando crescimento econômico próximos dos percentuais atuais há vários anos sem que as commodities subam tanto como se tem observado após o estouro da bolha imobiliária, mesmo sabendo-se que seus preços sempre estiveram sujeitos à variações especulativas. Num capitalismo que não mais consegue respirar sem bolhas, era previsível após o estouro de uma surgisse a necessidade de geração de outras (1), mesmo porque o capital sobre ameaça de ser consumido pelo fogo da crise tende a escapar para lugares aparentemente mais seguros à medida que as labaredas aumentam. E o que, mas imediatamente se apresenta pronto a acolhe-lo no mercado, são as commodities de toda natureza.

A situação mundial de abastecimento dessas commodities ajuda também na formação da bolha. O preço do petróleo, por exemplo, tem variado a partir de situações reais como os limites de fornecimento desse produto pela natureza e a instabilidade no Oriente Médio. A fraqueza do dólar e a inflação mundial são outros elementos de instabilidade dos preços. Mas não são suficientes para explicar altas tão significativas como na sexta-feira de 06/06/2008, quando o barril subiu mais de dez dólares frente a indicadores de que a economia americana fazia água. Se olharmos com cuidado os momentos recentes de aceleração do preço do barril, veremos que está colado ao agravamento da crise imobiliária e as dificuldades dessa economia se manter em pé. Ou seja, parte do capital que antes se multiplicava do nada em outras plagas, frente às ameaças de ser tragado pela crise, hoje se desloca com toda força para as commodities.

O estranho comportamento das bolsas de valores em todo mundo, que sofrem fortes quedas pela desvalorização das ações dos bancos e das financeiras, e em outros momentos se recuperam com o aumento dos preços das ações das empresas petrolíferas e das que lidam com extração e processamento de metais, desconsiderando o agravamento da crise e a possibilidade real de uma recessão global, apontam para formação de uma bolha nas commodities. Quanto às bolsas de mercadorias, as safras dos produtos agrícolas são aí negociadas várias vezes ao ano, o giro vem aumentando absurdamente. Em 2007 a safra de soja foi negociada 22 vezes e a de milho 10 vezes mais do que a produção física desses produtos. Só os fundos negociaram em média 8 vezes as safras agrícolas no ano de 2007, segundo matéria publicada recentemente na Folha de São Paulo, contra 3,5 em média em anos recentes. Na verdade o que se compra e vende nessas bolsas são derivativos financeiros, papeis derivados de ativos reais, que dependendo dos rumos da cotação terminam contaminando os preços dos produtos e vice-versa.

Mas os grandes fundos, não satisfeitos com os lucros resultante desse jogo de compra e venda de papeis, resolveram investir pesado na produção e comercialização dos produtos agrícolas, adquirindo enorme extensão de terras produtivas aráveis no mundo, inclusive indústrias de fertilizantes, silos de armazenagem de grãos, equipamentos de transporte e vias de escoamento, dando-lhes grandes vantagens na especulação dos preços desses produtos e dos papéis correspondentes negociados nos mercados futuros, já que podem influenciar na cadeia produtiva, no transporte e na comercialização dos produtos agrícolas. Fala-se em mais de 40 trilhões de dólares disponíveis em busca de aplicações rentáveis. Nesse jogo pesado de muito dinheiro sem substância, que deverá concentrar e elevar os preços das terras ao infinito, o médio e pequeno agricultor, principais responsáveis pela produção de alimentos consumidos pela população, poderão sumir do mapa muito rapidamente. É provável que os fundos, associados a outros grupos que já atuam especulando no mercado, determinem em curto prazo os preços dos produtos agrícolas na produção e na comercialização segundo seus interesses financeiros. Preços altos dos alimentos para o consumidor não significam necessariamente preços "justos" para o agricultor.

Como a queima de dinheiro pela crise não é suficiente para destruir todo capital fictício circulante, mesmo porque esse capital continua sendo gerado em velocidade estonteante pelos mais diversos mecanismos como meio de evitar o colapso do capitalismo, novas bolhas como a das commodities podem ser geradas, absorvendo e aumentando o capital sem rumo, trazendo uma estabilidade provisória e um precário equilíbrio à economia mundial, até que um novo espasmo se manifeste e lembre a existência e a gravidade da crise. O que difere a bolha das commodities de outras é que ela traz consigo o desabastecimento e o agravamento da carestia que levará milhões a morrer de fome, aumentando a violência e a barbárie em todos Continentes para manter ativa a máquina de "valorização do valor".

(1) Procura-se uma nova bolha

11/06/2008