quinta-feira, dezembro 31, 2009

O largo espectro das paixões

Rall


“Fiquei curioso em saber como se manifestaria na prática a fúria ou o ódio desses senhores que não são apenas dirigentes de bancos; são principalmente operadores financeiros ("traders") que ganham bônus. Eles dominaram o mundo durante 30 anos, definiram as regras da "nova" racionalidade econômica baseada no velho "laissez-faire", enriqueceram-se e tornaram ainda mais ricos os rentistas a quem estavam associados, provocaram um enorme aumento da desigualdade em toda parte, aumentaram a instabilidade financeira mundial e, afinal, provocaram a crise global de 2008, que obrigou os governos a gastarem cerca de 5% do PIB mundial para salvá-los.” Do artigo “A fúria dos financista”, de Luiz Carlos Bresser Pereira, publicado no jornal Folha de São Pulo, em 21/12/2009.

Uma certa nostalgia passei nas fileiras do largo espectro que se estende da extrema direita ao o outro lado da esquerda. Uns saudosos daquele capitalismo, cujas “impurezas” que simulam a acumulação possível eram marginais na sociedade capitalista. Do tempo em que o dinheiro era dinheiro “bom”, lastreado nas riquezas produzidas pelo trabalho assalariado e era conversível em ouro. O setor “produtivo” era hegemônico e a sociedade tinha pouco espaço para os banqueiros e rentistas, atividade atribuída aos grupos minoritários como os judeus, geralmente acusados nas crises de usurpadores da riqueza dos que trabalham e de ter pouco compromisso com os princípios da nação. Sabemos no que deu isso quando da subida de Hitler e seus seguidores nazistas ao poder na Alemanha, nas primeiras décadas do século passado.

Um outro lado se enche de saudades dos tempos da luta da classe aonde os campos amigos e inimigos eram bem delimitados. Lamenta-se por não existir mais proletários prontos para o sacrifício pela classe que iria fazer a revolução socialista e abolição da sociedade de classes. Muitos já tiraram o time de campo ou simplesmente passaram acreditar que aquilo eram equívocos da juventude e para repará-los assumiram posições do outro extremo. Passaram acreditar que com o capitalismo chegou-se ao fim da história e nada mais se pode fazer que não seja consertar os danos causados ao homem e a natureza por essa forma de produção excludente. Ou quando assumem posições políticas é para defender o capitalismo de estado, tão tirânico quanto à indiferente impessoalidade do mercado, e justificar a sede de poder de dirigentes caudilhescos.

Nada melhor para reacender ou apagar paixões do que o agravamento de uma crise! Os neoliberais, ao ver seus negócios afundarem, apesar de sua aparente aversão, muda o discurso e pedem socorro ao Estado, sem nenhum escrúpulo, enquanto o mercado está em baixa. Os estatizantes, agora aparentemente hegemônicos no mundo dos negócios, bradam no ar em voz altissonante “nós tínhamos razão!” e tornam-se afoitos em suas investidas nos países em que se acham no poder culpando “imperialismo”, com o qual faz negócios, pela crise. Em sua arrogância, esquecem que no salvador Estado, o endividamento para amparar a economia do abismo, que em muitos países já ultrapassou o valor do PIB, está o germe do próximo espasmo que pode levar ao total descontrole o paciente terminal.

Mercado e Estado são faces de uma mesma moeda. A menor ou maior presença do Estado na economia está relacionada ao momento pelo qual passa a sociedade moderna. Nos momentos de crescimento econômico o mercado se apropria de atividades na infra-estrutura, na saúde, educação e segurança, antes vista como função de Estado. No agravamento da crise é chamado para intervir pelos agentes do mercado que antes o rejeitavam. Na mais liberal economia mundial, a americana, além do colossal volume de dinheiro disponibilizado para o setor privado, o Estado intervém na composição de diretorias e de conselhos de grandes empresas e bancos, situação inimaginável há dois anos. O Estado esteve presente com muita força,
inclusive militar, nos primórdios do capitalismo, sem o qual talvez este tivesse dificuldade de se consolidar. Não foi e não é diferente nos países ditos em desenvolvimento tão queridos pelo capital, onde a coerção para que acumulação seja possível é feita pela ameaça do desemprego e pela força das armas. O Estado como o conhecemos nada tem de emancipador como querem alguns.

O que muitos analistas da grande imprensa não entendem, e não poderia ser diferente, pois suas expectativas de sair da crise não ultrapassam os horizontes da sociedade capitalista, é que, para produção de mercadorias se sustentar, empurra-se com a barriga a crise estrutural que vem se arrastando desde os anos 80, com o alargamento do crédito ao infinito ao consumidor e as empresas, com a geração de bolhas financeiras cada vez maiores no mercado e através do endividamento e das emissões de moedas pelos estados, com resultados sempre catastróficos nos momentos de agudização quando esses mecanismos não mais funcionam e as bolhas estouram. Por ironia, são exatamente os financistas e rentistas, tão maus vistos pelos discursos moralistas, quem movimenta o consumo e os investimentos nos intervalos pré-crises na era da acumulação simulada e de hegemonia do capital fictício. Sem a louca competição que foge ao controle da sociedade(1), incapaz de ser contida com medidas regulatórias e levada ao extremo pelo capital financeiro que busca se reproduzir a partir do nada com invenções exóticas, e sem a pronta intervenção do Estado para cobrir os prejuízos quando necessário, a extensão da crise na “economia real” já teria sido há muito desnudada.

De qualquer forma um “próspero” ano novo para todos!

31.12.2009

(1) O leite mijo de vaca e a lógica do capital

domingo, novembro 15, 2009

A bolha estatal na longa jornada da crise

Rall


“Como a economia mundial caiu num buraco tão profundo? Está se recuperando agora, mas dolorosamente, apesar do inédito afrouxo fiscal e monetário. Além disso, qual a possibilidade de que uma economia mundial equilibrada surja dessa alimentação forçada? O próprio fato de que tais ações drásticas foram necessárias é aterrador. O fato de haver pouco espaço para repetição da política é ainda mais aterrorizante. E o pior de tudo é que esta não é a primeira vez nas últimas décadas em que a economia mundial teve de ser conduzida em meio a desmoronamento pós-bolhas.” Do artigo “Como a economia caiu tanto assim”? Martin Wolf, editor principal e comentarista econômico do Financial Times, publicado no valor econômico de 28/10/2009.

No citado artigo, o comentarista econômico do FT Martin Wolf, expressa sua perplexidade, que não é só dele, sobre as difíceis escolhas para o enfrentamento da crise econômica. Perplexidade que se estende ao que virá depois da intervenção maciça dos estados com a emissão sem precedente de dinheiro, afrouxamento fiscal e juros perto de zero na busca de salvar bancos, grandes empresas e famílias endividadas. Fala-se em US$ 14 trilhões só de ajuda aos bancos no mundo.

Se for possível pensar no que virá depois das mais recentes manifestações da crise, como querem alguns, podemos fazer algumas indagações: como o déficit público, resultante de política fiscal, creditícia e de gastos generosos tem um limite, como seria possível a crise não se agravar quando esse limite for ultrapassado? Por outro lado, se a economia não se sustenta sem esse afluxo de recursos, como mantê-los sem os efeitos colaterais de uma liquidez infinita? Ou seja, como resolver a crise sistêmica do capitalismo que hoje vivenciamos numa situação de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come?

Os últimos dados da economia têm mostrado, que o crescimento ou queda do PIB nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, está profundamente atrelado aos recursos estatais fartamente disponibilizados. Essa liquidez forçada e os truques contábeis, tem aparentemente reequilibrado os balanços dos grandes bancos, que captam dinheiro a custo zero para emprestar aos governos à longo prazo, cobrando juros variados conforme os países, rendendo nos EUA em torno de 3,5% ao ano. Parte desse dinheiro que deveria ser utilizado para fazer fluir o crédito, são emissões dos bancos centrais que voltam aos governos na forma de empréstimos.

Como o crédito para o consumo e produção continua sendo uma operação de risco pela indefinição dos rumos da economia, parte dessa liquidez vem sendo destinada a especulação nas bolsas, em commodities e em outros ativos. Com isso, a imensa bolha estatal vem estendendo velozmente seus tentáculos ao mercado mundial, principalmente dos países em desenvolvimento. Fala-se em US$ 10 trilhões disponíveis correndo o mundo em busca de rentabilidade mesmo que seja fictícia. São valores que tendem aumentar na medida em que os governos, principalmente dos EUA, com uma política monetária frouxa, continuam inundando os mercados com dinheiro novo e juros perto de zero ou negativos, que permite a utilização de empréstimos em dólar nas operações bilionárias de carry-trade e ataques especulativos disfarçados ou a céu aberto, impactando nos preços dos ativos mundiais.

Esse fluxo de dinheiro tem levado a desequilíbrios cambiais graves, com a valorização das demais moedas em relação ao dólar, excetuando o yuan que com grandes intervenções de compra executadas pelo governo chinês, acompanha artificialmente os movimentos da moeda americana e faz crescer, num impulso incontido, as reservas em dólar. No entanto, a questão fundamental da fraqueza do dólar sinalizada desde o final da segunda guerra mundial, logo após as glórias em Bretton Woods, deve-se ao incessante aumento da produtividade que acarreta a queda do valor das mercadorias com as quais este se relaciona enquanto equivalente universal, e a expansão desmedida da circulação dessa moeda que há muito se deslocara da riqueza real que pretende expressar enquanto dinheiro mundial sustentado no poder político-militar dos EUA.

É um quadro que só tende a se agravar na medida em que os espasmos da crise terminal do capitalismo, ao aprofundar a competição entre empresas, alavancam a produtividade do trabalho incorporando novas tecnologias que levam ao desemprego estrutural e a não valorização real do capital. Há ainda a propensão do capitalismo pela extração da mais valia absoluta, que se manifesta quando trabalhadores são obrigados nas crises, para manterem seus empregos, aumentar a produtividade executando tarefas que seriam de responsabilidade de dois ou mais, numa racionalizalção empresarial selvagem para reduzir custos.

É claro que a inflação do dólar, e a conseqüente desvalorização, tende exacerbar-se se as emissões e os incentivos forem mantidos. Há, no entanto, e não sem razão, toda uma gritaria para que tudo continue como está, apesar dos indicadores apontarem que a bolha estatal, mãe de todas, não ter se mostrado como a melhor ignição para por em movimento a produção e o consumo de mercadorias por exigir custos adicionais futuros muito grandes. Essa gritaria está relacionada com a percepção de que só com mais dinheiro e os incentivos estatais é possível manter a ilusão de que o pior ficou para traz, como dizem. E ainda: que a economia real em crise profunda, não consegue manter-se em pé sem bolhas(1) altamente destrutivas, que tendem expandir-se ràpidamente em tempos de vida cada vez mais curtos.


15.11.2009

(1) Procura-se uma nova bolha

quinta-feira, agosto 27, 2009

O que antes era marginal agora domina a cena

Rall

Dos vários artigos sobre a economia que me obrigo a ler todos os dias, chamou-me atenção o de autoria de José Carlos de Assis, “Uma nova bolha no horizonte” escrito no Jornal Valor de 11 de agosto passado. O articulista levanta algumas questões importantes, pouco discutidas na grande impressa, mas derrapa nas conclusões: “a crise assinalou uma mudança de paradigma no coração do capitalismo, mas muitos tomam com simples retórica. Não se percebe que a decolagem do sistema financeiro especulativo do sistema real, origem da crise, aponta na direção de uma contradição fundamental que, na prática, só se resolverá com perdas patrimoniais incomensuráveis”, diz. Mais na frente: “os governos enterraram bilhões de dólares para salvar seus sistemas bancários. Contudo, os governos pouco fizeram para eliminar a contradição entre finanças especulativas e economia real.”

Tem alguns pontos que precisam ser esclarecidos. O Sr. Assis, fala da economia real como vítima do malvado sistema financeiro, que criou asas e dela se apartou para depois castigá-la sem piedade. Sim, de fato, o estouro das bolhas financeiras repercutiu na produção. No entanto, não entende o Sr. Assis e outros articulistas de esquerda que acusam o capital financeiro dos males do mundo, que as bolhas surgiram exatamente como a mão salvadora da economia real. Com a crise do capitalismo a partir dos anos 80, o processo de acumulação expresso pela equação D-M-D’ (dinheiro-mercadoria-mais dinheiro), cede lugar a um ativo mercado de papeis melhor representado pela fórmula D-D’ (dinheiro-mais dinheiro). A economia real para sustentar-se em pernas bambas, passa a alimentar-se de capital fictício gerado pela expansão do sistema creditício e pelas bolhas financeiras, como forma de compensar a estagnação e empurrar para frente a crise que se gestava. Em sua história, o capitalismo sempre lidou com bolhas que se manifestavam marginalmente e eram purgadas nas crises. Agora dominam a cena em frenética agitação financeira.

Na medida em que o capital disponível no mundo não achava mais na produção de bens materiais e imateriais o porto seguro para sua reprodução, foi encontrando outros meios de se multiplicar ficticiamente. Parte desse capital sem substância finca o pé na economia real, reciclando-se e buscando na base material da economia sustentação para formação de bolhas, como aconteceu no setor imobiliário. Outra parte aporta em países “em desenvolvimento” como a China, aonde a rentabilidade ainda é possível a custa de mais valia absoluta, extraída mobilizando-se em escala gigantesca força de trabalho antes adormecida no campo, que se deslocam para as cidades em movimentos migratórios jamais vistos com conseqüências imprevisíveis. Através do disciplinamento extremo utilizando-se toda forma de coerção, a exploração do trabalhador atinge o limite do esgotamento físico em países cantados em versos e prosa por uma esquerda desorientada.

A produção transcende os estados nacionais e seus nexos intercontinentais formam então, circuitos deficitários (1) que se auto-alimentam. Numa ponta encontram-se os países que recebem investimentos maciços de capital para produção de mercadorias a preços competitivos pelo uso intensivo de mão-de-obra barata; na outra, os países receptores dessas mercadorias, principalmente os EEUU, e do dinheiro dos superávits gerados por esse circuito, que ajuda alimentar o consumo interno através da expansão do crédito ao infinito e das bolhas nos diversos setores da economia. Essa movimentação fantástica de capital no globo, fictício ou não, só foi possível com a revolução da informática, que também revolucionou a produção com a automação das empresas e dispensa do trabalho. Não foi a pressa subjetiva pelo rápido enriquecimento, como fazem crer os moralistas, responsável pela crise, mas a crise da “valorização do valor” advinda dessa revolução, que em parte dispensou a mediação da mercadoria/trabalho na formação do capital, quem acelerou as ações do “sujeito automático” (Marx) em direção às pirâmides financeira.

O descolamento do “sistema financeiro especulativo do sistema real” é, portanto, bastante relativo. A lógica de produção de capital fictício, que numa análise apressada aparente uma coisa a parte, compõe um todo do qual não se exclui a produção real. Ou melhor, foi à crise da acumulação na economia real que alimentou esse processo e as mudanças de paradigmas, ao contrário do que sugere o Sr. Assis. Há muito tempo as empresas financeiras deixaram de só financiar e se apropriaram de parte cada vez maior da produção, e as empresas produtoras de bens e serviços não-financeiros passaram a ter seus próprios bancos ou a eles se associaram para garantirem o fechamento no azul de seus balanços com o capital fictício advindo da especulação. A crise contábil das empresas brasileiras que jogavam com derivativos, com a inversão da tendência do câmbio em 2008, é um exemplo miúdo de uma realidade bem mais complexa e pouco revelada. É só ver o volume de derivativos e ativos financeiros que continuam sendo negociados e em circulação, como bem assinala o articulista (US$ 650 trilhões de derivativos e US$ 160 trilhões de ativos), muitas vezes superior ao PIB Mundial estimado em US$ 50 trilhões.

Demonizar o capital financeiro e achar que é possível com regulações de toda ordem por cabresto na besta-fera e domá-la em benefício do lado “bom” da economia é pura ilusão de quem não está enxergando que a crise é uma crise estrutural profunda do capitalismo, com suas ondulações conjunturais que se manifesta na queda da economia, no desemprego crônico e crescente, no esgotamento dos recursos naturais e nas mudanças climáticas cada vez mais perigosas com o aquecimento progressivo da terra, pelos bilhões dos subprodutos degradados devolvidos diariamente a natureza por essa forma cega de produção.

(1) O circuito asiático da economia mundial

(Resposta ao artigo "Uma nova bolha no horizonte", do Sr. José Carlos de Assis, publicado em 11 de agosto de 09 no Jornal Valor)

27.08.2009

domingo, agosto 16, 2009

Armadilha do pensar, limites do agir

Rall

As formas de sofrimento psíquico na sociedade moderna podem ser entendidas, em seu limite, como uma reação desesperada da mente aprisionada por um “substrato”, construído de sensações passadas e presentes, de prazer e frustração, e, principalmente, elaborado e reelaborado por estímulos coercitivos da sociedade do trabalho. Estabelece-se como um pano de fundo tecido com mil linhas sem orientações precisas, e funciona como armadilha do pensar destroçado. Essa forma caótica que aprisiona e move o pensamento, cimentada pela lógica de "fazer dinheiro", transforma todos em “sujeitos automáticos” da razão burguesa. Quanto mais se aprofunda a crise do trabalho na sociedade capitalista, mais fictício torna-se o que antes poderia ser chamado de valor. Essa “abstração real” (Marx), "escondida" em relações sociais fetichizadas, age como importante determinante das ações humanas no fazer da história, sem que dela se tome consciência.

No decorrer dos séculos de implantação do capitalismo, ganhar dinheiro passou a ser a única virtude inconteste entre os homens que justifica os meios. Permite-se quase tudo no mundo da acumulação simulada: o roubo institucionalizou-se em todos os níveis da sociedade, da corrupção estatal às mais absurdas formas de transações empresariais. O discurso ridículo de moralização dessas relações através de normas está fadado ao fracasso, pois isso não são “desvios de condutas”, mas parte da lógica intrínseca do sistema que não resistiria se lhe amarrassem as pernas com normatizações jurídicas, que na verdade são feitas para lhe desatar as amarras e dar garantias contra o imprevisível.

O jogo da mudança tem que ser jogado olhando-se para dentro, na busca de entendê-lo, mas também para fora desse substrato. É um jogo contra-hegemônico com seus perigos e incertezas. Não se encontra elaborada e nem se pode querer para ele uma teoria-guia, pronta e acabada como as ideologias. Mas as teorias (1) são importantes, pois se não dão conta da totalidade, apesar de que devem apontar para, podem dar pistas significantes para o movimento social, que se move dentro do leque de opções que lhe é dado, prisioneiro que é dos fetiches da sociedade burguesa. Observa-se depois de alguns ensaios onde se tateiam os caminhos da emancipação, a queda no vazio e o desânimo dos sujeitos. Brotam daí os fundamentalismos sejam militantes, sejam narcísicos, como saída desesperada para o nada.

Mesmo aberto os caminhos, não há nenhuma garantia que possam ser percorridos. Os obstáculos aparentam intransponíveis, e o mundo paralisado pode afundar-se mais ainda na barbárie, onde resistirão as fortalezas de produção capitalista, armadas até os dentes, prontas a reagirem com violência, dentro ou fora de seu território a qualquer sinal de ameaça. O substrato que move o sujeito, introjetado através dos séculos de modernidade pela violência física e psíquica, das ameaças das baionetas à morte pela fome; pelo disciplinamento no ensino, no campo, nas fábricas, na clínica, nas cadeias, nos quartéis para que se aceite o trabalho assalariado, transforma o indivíduo em sujeito desse imperativo.

Estamos piores do que nossos ancestrais nômades que pelo menos eram solidários na luta pela sobrevivência. A aparente liberdade individual, que supostamente nos liberou dos chefes imperiais, ou mesmo da opressão tribal, é pura ilusão: deixamos uma forma de escravidão para cair noutra pior, no fetiche da mercadoria, do dinheiro. Aos “não-rentáveis” (Kurz) só resta à morte física ou social, onde a vergonha aos olhos dos outros pelos insucessos, de ser um desempregado, um perdedor, não tem limites. É visto com desprezo e desconfiança pelos que ainda trabalham. O medo de antes, de ver o parceiro ocupando seu posto levado pela mortal concorrência, passa à desconfiança das intenções malévolas do outro, que num acesso pode tirar-lhe os objetos fruto do suado trabalho, ou até mesmo a vida, o que não deixa de ser verdade.

Essa brutalidade, movida pela cega competição por um lugar ao sol na sociedade do trabalho, intensificada ao absurdo nos tempos neoliberais ultra-individualista, ocupa todos os poros da sociedade, transformando mesmo os mais próximos num ajuntamento desagradável de indivíduos barbarizados por interesses monetários e de poder. Quanto mais se aprofunda a crise, não é o sentido de solidariedade que prevalece, mas o desejo de morte do outro que ameaça ou obstrui o caminho, e um medo que deixa todos impotentes e acovardados para enfrentar esse estado de coisa. Mesmo assim é preciso enfrentá-lo!

(1) Breves reflexões sobre teoria e prática


15.08.2009

segunda-feira, julho 27, 2009

A retração da economia e a destruição de empregos

Rall

Alguns estudos mostram que o tempo que decorre entre o início das crises agudas do capitalismo e o fechamento dos postos de trabalho nas empresas, tem se reduzido dramaticamente nas últimas três décadas. Antes da Terceira Revolução Industrial, as demissões aconteciam, mas tinha um tempo, relativamente longo se comparado com os padrões atuais, entre o surgimento da crise e a perda do emprego. Na fase atual do capitalismo, a resposta é imediata: o desemprego, como a forma mais fácil de cortar custos, aumenta antes mesmo das empresas sentirem o efeito da crise em seus negócios. Os empregados part-time, os contratados por tempo determinado e outras formas de vínculos precários são os primeiros da lista. Logo em seguida, e sem demora, os empregos mais estáveis, se é que podemos considerar ainda a existência dessa categoria. Nos Estados Unidos, as estatísticas mostram que do início da recessão até dezembro de 2007, o desemprego aumentou 5% para uma retração 2,5% da economia, situação que não deve ser diferente nos outros países.

Por outro lado, já se fala a partir também de observações pregressas, que de forma nenhuma os empregos votam aos patamares anteriores, mesmo se a produção e o mercado mundial recuperassem o fôlego perdido, o que é duvidoso. Tem-se observado, apesar da crise, que a produtividade do trabalho vem aumentando significativamente em todo mundo. Num primeiro momento, os rearranjos na organização da produção forçada pela dispensa de trabalhadores, podem ser responsáveis por essa maior produtividade. Os não dispensados passam a produzir mais, exercendo funções dos demitidos, sem que haja ajustes salariais. Ou seja, os mecanismos de aumento da mais-valia absoluta são acionados e aceitos sem contestação pelos que ficam, coagidos pelo medo de serem desligados.

Isso dura tempo suficiente, e independe de novos investimentos que venham ser feitos em capital fixo para aumentar ainda mais a produtividade, agora por conta de novas máquinas e equipamentos de automação da produção. Não é à toa que empresas que vendem tecnologia de automação e as que fabricam modernas plataformas de produção, começam a sentir aumento nas encomendas. Os balanços positivos que tem surpreendido os analistas são a combinação do aumento da produtividade do trabalho dos que ficam e substituem as funções dos dispensados, das políticas fiscais generosas e dos ajustes contábeis feitos com dinheiro público fartamente distribuído pelos governos a juros na maioria das vezes negativos. Mas é a segunda onda de aumento da produtividade, movida pela feroz concorrência pelo que restou de mercados, que ao incorporar novas tecnologias de automação, fechará mais ainda postos de trabalho.

Essa lógica a qual está subordinada o capital, mais evidente na atualidade, de serrar o galho em que está sentado com o aumento sem limites da produtividade e destruição incessante de empregos, tem suas conseqüências: na produção, a intensificação da crise de “valorização do valor” pela expulsão do trabalho vivo com a revolução da informática e aumento do trabalho morto; na circulação, a dificuldade de realização da mais-valia pela redução cada vez maior do número de consumidores produtivos. Para esse impasse, buscou-se como saída o consumo improdutivo, financiado pelo crédito infinito e por bolhas de tamanho crescentes, que a cada estouro mostra a inviabilidade dessa fórmula como solução para crise do capitalismo, deixando como legado rastros de destruição e sofrimentos.

A crise, longa e lenta, gera a cada espasmo do paciente em agonia, além do desemprego, montanha de crédito podre advindo desse dinheiro sem substância, que tem que ser limpo pelos faxineiros do capital. O Estado, à custa de um endividamento contínuo e sem precedente, impossível de ser pago por gerações futuras, é obrigado a engolir a fedentina vomitada pelo mercado e, ao mesmo tempo, alimentá-lo boca a boca com capital fictício produzido em suas entranhas, mesmo sabendo que mais na frente virão outros espasmos bem mais dolorosos e o risco de um colapso total.


27.07.2009

sábado, junho 27, 2009

O pior já passou? Um "sim" ecoa afoito no mundo dos negócios

Rall

O endividamento em que vem se enredando os Estados Unidos e os outros países do centro e da periferia, na ilusão de assim driblarem a crise, é a bolha do momento. O que são as bolhas se não a geração de capital sem substância, seja pelo mercado, pelo Estado ou simultaneamente pelos dois pólos da sociedade da mercadoria? Isso mostra a impossibilidade do capitalismo em crise terminal desde os anos 80, sustentar-se sem produzir montanha de capital fictício. A expansão monetária global que ora assistimos para segurar a economia, à custa do endividamento dos estados e sem precedente na história do capitalismo, jamais será paga com parcelas de mais valia futura transformada em impostos.

O acirramento da concorrência entre os capitais, forçando num primeiro momento a queda dos preços e o deslocamento de mercadorias para mercados antes pouco cobiçados, pode levar ao protecionismo ou a desindustrialização(1) de regiões inteiras. Os primeiros sinais desse fenômeno são observados na América Latina e em outros Continentes com a chegada principalmente dos produtos chineses. Num segundo momento, a competição violenta entre as empresas forçará o aumento da produtividade, introduzindo novas tecnologias dispensadoras de trabalho na produção de bens, agravando o processo de “valorização do valor”, ou seja, de formação de capital, o que torna o aperto fiscal para cobrir o déficit público mais difícil no futuro.

Quando o peso da dívida aumentar o risco de colapso dos estados sem condições fiscais de resolverem o problema do déficit orçamentário, as emissões fiduciárias continuam e a inflação surgirá galopante para infringir a sociedade, principalmente às populações desprotegidas, a fúria do "terceiro cavaleiro do apocalipse". Por enquanto este se mantém a espreita, esperando o momento oportuno para cavalgar cuspindo fogo em todas as direções.

Essa mudança de perspectiva, de deflação de ativos para inflação, é a forma perversa do deslocamento dos custos da crise para as costas da população menos favorecida, já atormentada pelo desemprego. As carências deverão se agravar com os estados descolando-se cada vez mais de qualquer compromisso social, principalmente na área da saúde, educação e aposentadoria, para cobrir os rombos no mercado. Mas, antes dessa chegada, a produção poderá cair menos ou até mesmo se estabilizar e ganhar um certo fôlego com a formação da bolha estatal que ajudará alimentar filhotes de bolhas no mercado, iludindo os tolos como sendo o início de uma retumbante retomada. As bolsas mostram essa tendência.

O discurso agora tão em voga de que o pior já passou, expressa as dificuldades e os limites que tem os teóricos do mercado de variadas matizes, de avançarem na análise da crise do capitalismo e as expectativas quase religiosas de soluções milagrosas imediatas. E não poderia ser diferente se para eles a história é a história da eterna sociedade produtora de mercadorias, não existindo o antes nem o depois que não sejam variações dessa forma de produção. Desse modo de pensar e analisar a realidade não estão salvos os auto-intitulados economistas de esquerda.

27.06.2009

(1) A tendência da indústria brasileira

domingo, maio 10, 2009

O súbito otimismo dos agentes do mercado

Rall

Às sombras do outono no jardim das fantasias, cogita-se uma rápida retomada da economia mundial. A leve brisa que sopra aplacando o calor emanado pela queima sem precedente de capital, já é visto por alguns como uma luz no fim do túnel. Ou, como diz um incorrigível otimista, o comentarista da Globo News George Vidor: pelo menos a luminescência de um vagalume. Realmente, seria difícil nada acontecer com tanto dinheiro sendo posto pelos governos para tapar os buracos do mercado. Apesar da recessão, sinais de aumento de liquidez começam aparece, com repercussões altistas nas bolsas e aparente melhora contábil de setores da economia.

As crises que acometem o mundo a partir dos anos 80 na forma de desastres financeiros globais, não podem ser vista como as crises cíclicas clássicas de curto prazo, que vem sempre acompanhada de uma retomada rápida do crescimento após a economia beijar o fundo do poço. A situação é mais complexa por serem esses desarranjos manifestações da crise estrutural do capitalismo, que no seu bojo abriga momentos de expansão e retração da atividade econômica, como convulsões de um moribundo que teima em não morrer.

Mas o capitalismo que vivenciamos, cada vez mais impossibilitado pela revolução tecnológica de ampliar a produção de mais valia, tendência agravada a cada espasmo da crise, só se porá em lento movimento apoiado no crédito sem limite no tempo e em novas bolhas, fenômenos intrinsecamente relacionados. O crédito, no entanto não flui, encontra-se empoçado como diz a gíria do mercado, apesar do derrame de papel-moeda em todo globo pelos bancos centrais.

A volta do Estado à cena política, fabricando e distribuindo dinheiro como nunca para irriga o crédito e maquiar os balanços dos grandes aglomerados econômicos, pode estar gestando a mãe de todas as bolhas, inflada por um conjunto de medidas anti-recessivas. Agora, sem subterfúgios e sem a mediação dos mercados financeiros colapsados, os governos imprimem papel-pintado que chamam dinheiro e põem na conta do Estado, aumentando o déficit fiscal que deverá ser coberto num longínquo futuro por impostos arrecadados de uma mais valia que não se realizará já mais.

Se essa conta, como todos sabem, é impossível ser paga pelas produções vindoura de mercadorias, a tendência é ter-se dinheiro sobrando sem lastro na riqueza real. E dinheiro que excede a riqueza além de um certo limite, não importa a origem, é inflação que como a deflação são os sinais mais visíveis da crise global do capitalismo. Apesar de tudo, aparentemente nada de novo se apresenta até agora capaz de substituir o modo de produção vigente. A saída via Estado, defendida por "socialistas" de países da América Latina, só diferem das medidas dos países ricos, da Europa aos Estados Unidos, pelo grau de intervenção (muito maior nos últimos), e pela arrogância de seus pequenos dirigentes que acreditam estar mudando o mundo.

10.05.2009

sábado, março 28, 2009

Por que a crise atual é pior do que a de 29?

Rall


Oitenta anos separam 1929 de 2009. Tempo insuficiente para entender-se os acontecimentos daquele período, muito menos os anos posteriores que deram origem ao nazi-facismo na Europa e segui-se à segunda guerra mundial com todos os seus horrores, o capitalismo já encontra-se imerso na maior crise de sua existência. Olhando pela janela da história nosso passado recente, não precisamos de nenhuma expertise para enxergar as diferenças fenomenais entre aquele mundo, onde as formações pré-capitalistas abundavam, e o de hoje, de absoluta hegemonia do capital, que traz como efeitos colaterais desequilíbrios ecológicos assombrosos.

Em 29, e até após a segunda guerra mundial, parte significativa da população de um planeta muito menos povoado vivia no campo, mesmo na Europa, principalmente na Central, na Rússia e nos países do Leste que com ela formavam o bloco Soviético. Nações continentais como a Índia e a China eram praticamente agrárias. A situação não era diferente no restante da Ásia, América Latina. Os EUA, que despontava como a grande potência industrial pós-guerra, o peso do campo era importante. Parte do que se produzia ia para o mercado mundial (como o café e o açúcar aqui no Brasil), mas a economia de subsistência tinha ainda um peso muito grande, ou seja, significativos agregados humanos só marginalmente se relacionava com o mercado. A troca do excedente produzido em muitas áreas rurais ainda se dava sem a mediação do dinheiro, o trabalho assalariado avançava, mas não tinha aí se consolidado.

Depois da segunda guerra mundial, o fluxo migratório em um mesmo país, ou entre países, sempre se deu no sentido campo-cidade. O avanço da monocultura de produtos para o mercado mundial, e, mais recentemente, o emprego intensivo de capital e de novas tecnologias no campo, movimentou imensos contingentes humanos em direção as cidades, que resultou em megalópoles com problemas infindáveis, principalmente nos países de terceiro mundo. Toda uma população que antes vivia no campo e pouco dependia do dinheiro para sobreviver, passa agora depender da produção capitalista e, conseqüentemente, do vil metal sem o qual põe em risco sua sobrevivência.

A crise de 29 se alastrou pelo mundo, mas foi sentida mais intensamente na Europa Ocidental e EUA. Se compararmos o PIB mundial daquele período com o atual como também a extensão da crise, veremos que a destruição de capital em 29 foi infinitamente inferior ao que hoje vivenciamos. O desmoronamento do sistema financeiro e a violenta retração da produção que continua em curso é global. Não existem regiões, países ou populações menos afetados como foi observado em 29. A cidade e o campo contorcem-se com a mesma dor, basta analisar o comportamento dos preços das commodities de toda espécie que vem despencando pelo fraco desempenho do mercado mundial.

Ao colapso das empresas seguir-se-á o colapso de países e regiões inteiras apesar das instituições anticíclicas criadas antes e após a segunda guerra mundial. Países literalmente falidos já fazem fila e batem de pires na mão na porta do FMI, dos bancos centrais europeus e americano em busca de salvação. Será possível? Em terras arrasadas, depois de revolvidas, pode nascer alguma coisa, mesmo que seja erva daninha. Mas o custo social, que ainda não cobrou seu preço, será devastador! O desemprego, já agravado pela terceira revolução industrial, pode atingir números dramáticos e os governos dificilmente conseguirão manter benefícios para todos desempregados, mesmo porque a prioridade é utilizar os recursos financeiros, fictícios ou não, para manter a máquina capitalista autofágica funcionando.

O caminho que seguem com determinação para salvar o capitalismo global em crise continua o mesmo: mais bolhas. Antes estimuladas pelos governos e geradas nos mercados é agora de vez assumida pelos Estados que já não escondem a impressão de dinheiro sem substância em suas casas da moeda em magnitudes jamais vistas sob o aplauso de todos. O capitalismo em fase terminal, para manter-se morto-vivo teve que fraudar a acumulação com toda espécie de bolhas e esticar o crédito ao infinito nas últimas décadas. Sem milagres a vista, a toada continua a mesma, agora sob a batuta dos governos até que um novo estouro recobre o real sentido da crise.


Sábado, 28 de março de 2009.

sexta-feira, março 13, 2009

Os zumbis da economia em crise

Rall


"Hoje o mundo é totalmente dependente do capital internacionalizado para qualquer investimento. O chamado capital nacional é uma ficção. O problema é que o capital não tem mais como se reproduzir na economia “real”. Seu destino é girar em falso, sem rumo como um zumbi, produzindo bolhas financeiras aqui e acolá, simulando acumulação. É a forma que encontrou de se manter morto-vivo na sociedade do trabalho em crise."
Rumores da Crise - Rall: Um Zumbi assombra o mundo – 08/05/2004

"Vamos ser diretos aqui. Há uma chance razoável, não uma certeza, de que Citi e BofA, juntos, percam centenas de bilhões de dólares nos próximos poucos anos. E seu capital não é nem remotamente suficiente para cobrir as possíveis perdas. De fato, a única razão pela qual ainda não quebraram é a de que o governo está agindo como um esteio, implicitamente garantindo suas obrigações. Mas são bancos zumbis, incapazes de fornecer o crédito de que a economia precisa."
Folha de S.Paulo – Paul Krugman: Os bancos diante do precipício - 24/02/2009

Essa polêmica sobre zumbis lembra-me de um filme, se não me engano de Paul Morrissey, sobre o Conde Drácula que doente, acredita recuperar-se bebendo sangue de virgem. Com a escassez de mulheres castas na Romênia, resolve viajar da Transilvânia até uma remota fazenda italiana, depois de receber uma carta informando-o que um pai ambicioso, zelava pela castidade das filhas, cobiçando casá-las com nobres que oferecessem uma merecida recompensa pela preciosa raridade. Numa viagem cheia de percalços e confusões, o moribundo Conde a duras penas consegue chegar ao destino. Num estado de excitação que fazia todo corpo tremer, é apresentado às garotas e de pronto se apaixona pela mais velha que num gesto provocante, sacode o cabelo e deixa nu todo um lado do belo pescoço. O Conde, na mesma noite, crava os dentes ferinos no sensual pescoço, e solta um grito agoniado quando o sangue esguicha em sua boca. Ao passar dos dias, vai ficando cada vez mais angustiado à medida em outros pescoços são mordidos e o sangue que jorra é rejeitado por seu refinado paladar. Sabe como morto-vivo, que se não encontrar o precioso alimento logo só restará um espectro de vampiro a vagar sem rumo por um estranho mundo, um verdadeiro zumbi.

O capital, nos seus estertores, apresenta comportamento semelhante. Não tendo aonde aporte para sugar trabalho vivo que conserve e faça crescer o morto, sofre como o Drácula de nossa história em busca de sangue virgem. O trabalho vivo, alimento essencial a reprodução do morto-vivo capital, vem rareando com a corrida pelo aumento da produtividade imposto pela concorrência global na terceira revolução industrial. O Conde Drácula, na desesperada busca de sangue virgem, compete com o mundo dos homens e se dá mal. Os capitais, em busca de competitividade, guerreiam entre si expulsando seu alimento da produção, portanto parte de seu ser. O requintado Vampiro, ao rejeitar o sangue de não virgens apesar da abundância, sabe que não sobreviverá. O capital, ao não suportar sequer o cheiro do suor dos “não-rentáveis” (Kurz), que no desespero famélico oferecem-se aos montões para serem consumidos como mercadoria barata, terá o mesmo destino. No encanto pelas máquinas esquece que o trabalho humano abstrato é seu alimento e que na sociedade burguesa o homem para consumir os meios necessários a sua reprodução tem que vender seu trabalho ou morrem de fome, homem e capital.

Na concorrência empresarial, a tendência é refazer-se a composição orgânica do capital, reduzindo-se o capital variável e aumentando o fixo. Ao tornar mais oneroso os custos dos investimentos com o aumento do capital fixo (máquinas, equipamentos etc.), reforçar-se então a importância do crédito. O “valor valorizado” (Marx) definha, seu espectro se liberta e como um zumbi assombra o mundo simulando acumulação na forma de capital fictício. Zumbi não são só bancos insolventes, mas todo capital financeiro que não aportando na produção aonde a rentabilidade é insuficiente, simula em suas entranhas a acumulação, reproduzindo papéis destituídos de substância de valor. O Sr. Krugman em seu artigo, parece acreditar que a ganância e as más decisões são responsáveis pelo castigo que nos impõe a crise. Apesar de reconhecer as incertezas que o mundo nos submete, não ultrapassa em suas análises os limites nos quais os homens são obrigados a se mover na sociedade burguesa.

A ilusão de que a estatização é a solução para crise do crédito, ao qual se atribui os motivos da crise sistêmica, reside no fato de os teóricos da economia rejeitar o trabalho abstrato como substância do valor, de renegar inclusive as descobertas de seus economistas mais lúcidos como Ricardo e Adam Smith. O que se observa com o movimento dos neoliberais em direção ao Estado “empreendedor”, que deixa amuada a esquerda estatizante, é a busca de uma nova bolha, já que no mercado todas explodiram e não se vislumbra outras. Bolha que vem se formando com a ajuda das instâncias financeiras dos Estados e por elas geridas, consensuada pelos governos e agentes econômico, deverá servir de base para as reformas articuladas pelos países do Centro. Pelo enorme volume de dinheiro sem lastro colocado a disposição e impressos nas casas da moeda, no momento certo essa bolha estatal também explodirá, talvez na forma de hiperinflação, sem, contudo, estancar a crise que é dos limites da acumulação do capital cuja expansão do crédito ao infinito foi um dos seus sintomas.

13.03.2009

domingo, fevereiro 15, 2009

O Protecionismo e seus conteúdos

Rall

Os primeiros gritos em defesa do emprego e da produção nacional começam ecoar nos países europeus e nos EUA. É um indicador importante da incapacidade dos políticos e das camadas dirigentes reverterem a crise sistêmica com os mecanismos monetários ou keynesianos conhecidos. Buscam-se remédios antigos para uma situação que vinha se acumulando desde o início dos anos 80, quando se acelera a destruição de empregos com o impacto das novas tecnologias utilizadas na produção de mercadorias. A cada sinal da crise que estava por vir, aumenta-se a produtividade e novos postos de trabalho são fechados; a concorrência, em todos os níveis da sociedade, torna-se cada vez mais feroz, e, para compensar a queda da massa total de mais valia e lucro, infla-se ativos reais e imaginários, como forma enganosa de garantir o crédito em expansão para os próximos séculos, e com isso o consumo.

Já vejo o indignado leitor, com o dedo no gatilho, oferecendo-se para ser parte do pelotão de fuzilamento pronto a ajustar contas com aqueles que trapacearam o mundo. Calma senhores, não é bem assim! Quantos de nós nos locupletamos utilizando as vantagens oferecidas pelo sistema financeiro para fazer nosso dinheiro “crescer”? O que investimos em papéis, mesmo que sejam os restos de um minguado salário, obedece à mesma lógica do mega-investidor de bilhões de dólares. Essa lógica, que é a lógica do capital de fazer mais dinheiro, fictício ou não, se estabelece na sociedade capitalista independente das vontades mais poderosas. O discurso, culpando a especulação financeira pelos sofrimentos do “bom capital produtivo” é demagógico, pois, apesar de toda reclamação continuam pondo trilhões de dólares no sistema colapsado. É perigoso, pois desvia a atenção dos motivos reais da crise e elege setores da sociedade como bode expiatório de uma lógica cega e destrutiva, sem nenhum átomo de crítica.

Nas crises do capitalismo, em particular essa pela sua dimensão global e pela dificuldade de se enxergar no horizonte saídas, onde se destrói sem piedade capitais e milhões de empregos, pondo em risco a sobrevivência de parte da população do planeta, traz à tona não só o medo, mas o que há de pior gerado no cotidiano barbarizado e recalcado em tempos “normais”. Os acenos dos governos ao protecionismo refletem a incapacidade de gerenciarem a crise, mas também as pressões daqueles que ao verem seus empregos ameaçados, buscam no outro o motivo de sua miséria. O conflito se estabelece não só com o outro de fora, mas também com o outro de dentro, o imigrante. E o outro de dentro já não é só mais o imigrante dos continentes distantes: África, Ásia, América Latina, esse há muito saco de pancada dos grupos e partidos de direita de conotação racista e fascista. O outro de dentro é o próprio europeu do leste, mesmo aqueles dos países que fazem parte da União Européia.

A crise ainda não mostrou sua verdadeira face, mas as notícias do ressentimento de trabalhadores da Europa Ocidental contra os que ocupam postos de trabalho por uma mísera remuneração são cada vez mais evidentes. É como fossem estes os culpados pela destruição de empregos e precarização do trabalho e não a busca incessante do capital por maior rentabilidade. O aumento da intolerância dos governos com os imigrantes é o outro lado da moeda. Aonde se assume mais abertamente a repressão ao imigrante, como na Itália de Berlusconi, são os primeiros sinais do que está por vir com o agravamento da situação. Acusar os imigrantes e outros grupos minoritários pela crise do trabalho e pela insegurança na sociedade, é uma estratégia nada desprezível para se ganhar o apoio das massas ameaçadas pelo desemprego ou já desempregada, deixando incólume o capitalismo de uma crítica mais categorial. O alimentado medo do terrorismo completa o cerco que se fecha na Europa contra extrangeiros e filhos destes já há muito estabelecidos.

Nesse caldo de cultura, a generalização da violência de grupos nacionalista, racistas e protofacistas, hoje esporádica, é uma possibilidade, como também o crescimento dos partidos de direita xenófobos, que com seus discursos belicosos e simplistas aumentam as tensões contra os de “fora”, acusando-os de invadir a sociedade ocidental com mercadorias baratas, principalmente a tão parcamente remunerada força de trabalho, ameaçando os sagrados empregos do homem branco ocidental. Corre ainda nesse rio caudaloso, pronto a se tingir de vermelho, um antissemitismo surdo e rancoroso, nunca totalmente extirpado da sociedade européia, principalmente nesse momento em que no capital financeiro são depositadas todas as mazelas da crise global do capitalismo. Nos momentos mais destrutivos da crise, a guerra interna e externa, como forma extrema da política na sociedade burguesa, é sempre uma solução, regressiva, mas racionalmente planejada.

15.02.2009