quinta-feira, dezembro 31, 2009

O largo espectro das paixões

Rall


“Fiquei curioso em saber como se manifestaria na prática a fúria ou o ódio desses senhores que não são apenas dirigentes de bancos; são principalmente operadores financeiros ("traders") que ganham bônus. Eles dominaram o mundo durante 30 anos, definiram as regras da "nova" racionalidade econômica baseada no velho "laissez-faire", enriqueceram-se e tornaram ainda mais ricos os rentistas a quem estavam associados, provocaram um enorme aumento da desigualdade em toda parte, aumentaram a instabilidade financeira mundial e, afinal, provocaram a crise global de 2008, que obrigou os governos a gastarem cerca de 5% do PIB mundial para salvá-los.” Do artigo “A fúria dos financista”, de Luiz Carlos Bresser Pereira, publicado no jornal Folha de São Pulo, em 21/12/2009.

Uma certa nostalgia passei nas fileiras do largo espectro que se estende da extrema direita ao o outro lado da esquerda. Uns saudosos daquele capitalismo, cujas “impurezas” que simulam a acumulação possível eram marginais na sociedade capitalista. Do tempo em que o dinheiro era dinheiro “bom”, lastreado nas riquezas produzidas pelo trabalho assalariado e era conversível em ouro. O setor “produtivo” era hegemônico e a sociedade tinha pouco espaço para os banqueiros e rentistas, atividade atribuída aos grupos minoritários como os judeus, geralmente acusados nas crises de usurpadores da riqueza dos que trabalham e de ter pouco compromisso com os princípios da nação. Sabemos no que deu isso quando da subida de Hitler e seus seguidores nazistas ao poder na Alemanha, nas primeiras décadas do século passado.

Um outro lado se enche de saudades dos tempos da luta da classe aonde os campos amigos e inimigos eram bem delimitados. Lamenta-se por não existir mais proletários prontos para o sacrifício pela classe que iria fazer a revolução socialista e abolição da sociedade de classes. Muitos já tiraram o time de campo ou simplesmente passaram acreditar que aquilo eram equívocos da juventude e para repará-los assumiram posições do outro extremo. Passaram acreditar que com o capitalismo chegou-se ao fim da história e nada mais se pode fazer que não seja consertar os danos causados ao homem e a natureza por essa forma de produção excludente. Ou quando assumem posições políticas é para defender o capitalismo de estado, tão tirânico quanto à indiferente impessoalidade do mercado, e justificar a sede de poder de dirigentes caudilhescos.

Nada melhor para reacender ou apagar paixões do que o agravamento de uma crise! Os neoliberais, ao ver seus negócios afundarem, apesar de sua aparente aversão, muda o discurso e pedem socorro ao Estado, sem nenhum escrúpulo, enquanto o mercado está em baixa. Os estatizantes, agora aparentemente hegemônicos no mundo dos negócios, bradam no ar em voz altissonante “nós tínhamos razão!” e tornam-se afoitos em suas investidas nos países em que se acham no poder culpando “imperialismo”, com o qual faz negócios, pela crise. Em sua arrogância, esquecem que no salvador Estado, o endividamento para amparar a economia do abismo, que em muitos países já ultrapassou o valor do PIB, está o germe do próximo espasmo que pode levar ao total descontrole o paciente terminal.

Mercado e Estado são faces de uma mesma moeda. A menor ou maior presença do Estado na economia está relacionada ao momento pelo qual passa a sociedade moderna. Nos momentos de crescimento econômico o mercado se apropria de atividades na infra-estrutura, na saúde, educação e segurança, antes vista como função de Estado. No agravamento da crise é chamado para intervir pelos agentes do mercado que antes o rejeitavam. Na mais liberal economia mundial, a americana, além do colossal volume de dinheiro disponibilizado para o setor privado, o Estado intervém na composição de diretorias e de conselhos de grandes empresas e bancos, situação inimaginável há dois anos. O Estado esteve presente com muita força,
inclusive militar, nos primórdios do capitalismo, sem o qual talvez este tivesse dificuldade de se consolidar. Não foi e não é diferente nos países ditos em desenvolvimento tão queridos pelo capital, onde a coerção para que acumulação seja possível é feita pela ameaça do desemprego e pela força das armas. O Estado como o conhecemos nada tem de emancipador como querem alguns.

O que muitos analistas da grande imprensa não entendem, e não poderia ser diferente, pois suas expectativas de sair da crise não ultrapassam os horizontes da sociedade capitalista, é que, para produção de mercadorias se sustentar, empurra-se com a barriga a crise estrutural que vem se arrastando desde os anos 80, com o alargamento do crédito ao infinito ao consumidor e as empresas, com a geração de bolhas financeiras cada vez maiores no mercado e através do endividamento e das emissões de moedas pelos estados, com resultados sempre catastróficos nos momentos de agudização quando esses mecanismos não mais funcionam e as bolhas estouram. Por ironia, são exatamente os financistas e rentistas, tão maus vistos pelos discursos moralistas, quem movimenta o consumo e os investimentos nos intervalos pré-crises na era da acumulação simulada e de hegemonia do capital fictício. Sem a louca competição que foge ao controle da sociedade(1), incapaz de ser contida com medidas regulatórias e levada ao extremo pelo capital financeiro que busca se reproduzir a partir do nada com invenções exóticas, e sem a pronta intervenção do Estado para cobrir os prejuízos quando necessário, a extensão da crise na “economia real” já teria sido há muito desnudada.

De qualquer forma um “próspero” ano novo para todos!

31.12.2009

(1) O leite mijo de vaca e a lógica do capital