terça-feira, dezembro 14, 2010

A caixa mágica de Bernard Madoff

Rall


O aumento da produtividade pela incorporação de novas tecnologias impulsionada pela concorrência global, tornando supérfluo o “trabalho abstrato” na produção de mercadorias, manifesta-se nos negócios como aumento do capital fixo em detrimento da força de trabalho, desemprego estrutural e queda da rentabilidade na economia real. Como não há capitalismo sem lucro empresarial, ou seja, sem produção de mais-valia, busca-se na criação de capital fictício um simulacro da acumulação em crise. A partir daí, qualquer absurdo que aparentemente possa contribuir para o não desmoronamento do sistema é aceito como lógico, mesmo que no dia seguinte seja descartado como lixo. É nesse contexto que certas criações do mercado só aparecem como “loucura” a posteriori, quando devoram seus criadores.

Uma dessas invenções, o caso Madoff, um fundo com mais de 50 bilhões de dólares, por envolver grupos financeiros e gente considerada importante no mercado, sendo ele mesmo uma dessas personagens referenciadas na Wall Street, é o que mais repercutiu no show midiático dos últimos anos. Antes de se desfazer no ar, aparecia aos olhos de ambiciosos investidores como uma caixa mágica onde seu dinheiro entrava e saia duplicado. Como lá dentro não existiam máquinas da casa da moeda capazes de transformar papel em branco em notas verdes, todos sabiam que algum tipo de fraude era praticado. Inclusive grandes bancos como o HSBC, onde 33% de todos os recursos encaminhados para o fundo Madoff passaram por suas subsidiárias.

Somam-se ao HSBC uma longa lista de outros bancos americanos e europeus: Santander, JPMorgan, UBS, Citigroup, UniCredit e o Sonja Kohn, só para citar alguns, que com seus fundos alimentavam a trama sabendo que o esquema era insustentável, segundo denuncia de Irving Picard, administrador encarregado de recuperar o dinheiro perdido. Como fora possível a aceitação de tamanha fraude por investidores e instituições que conheciam as regras do mercado e pareciam fora de qualquer suspeita aos olhos da sociedade? Perguntam-se atônitos alguns analistas.

O esquema Ponzi como o aplicado por Madoff, onde um fundo de investimento paga gordos rendimentos aos primeiros investidores com o dinheiro investido pelos últimos a entrarem, é mais comum no aparente sério mundo dos negócios do que imaginam alguns mortais. É a forma extrema de se “multiplicar” o dinheiro sem nenhuma mediação, movido pela lógica da geração de capital fictício. Nesse mercado de ilusões, o real só aparenta ser real nos momentos de crise. Mesmo assim de forma passageira, fugaz, mas com suficiente força para causar estragos significativos. Passado este momento tudo continua movendo-se como dantes até um novo terremoto.

A prática do esquema Ponzi são formas não mais encobertas pelo véu da dissimulação, que esconde a fraude do capital em processo de interrupção da acumulação na economia real. Quando revelado, geralmente ultrapassa os limites aceitos na simulada acumulação das bolhas de todo espécie e na impressão de dinheiro sem substância pelos Estados nacionais. Impelido pela mesma lógica especulativa que faz a máquina do capital fictício mover-se, deixa os investidores seguros, mesmo aqueles com mais consciência do risco, pois é parte do jogo do mercado. Só se manifesta como “escândalo”, quando esgotado, desmorona transformando em cinzas o dinheiro investido, sacudindo da letargia os sistemas regulatórios que tudo sabiam, mas se recusavam investigar, achando que deveria ficar por conta do mercado corrigir o que poderia ser considerado aberrações, das quais provavelmente se beneficiavam.

A discussão entre os que defendem que sejam utilizados os mecanismos do mercado para coibir os excessos e os que defendem a intervenção regulatória do Estado para corrigir as imperfeições, é vazia de conteúdo. Pois o Estado quando regula, ou é chamado para tanto geralmente nas crises, busca intervir não contra o capital, mas para garantir sua reprodução. Não podendo ser impeditiva da acumulação, a regulação torna-se, entretanto, um problema para capitalismo em crise que já não mais consegue sobreviver sem crédito ao infinito, bolhas e endividamento estatal, fábricas de capital fictício. O excesso que deveria ser reprimido, a profusão de capital fictício, funciona hoje como pulmão artificial que produz o oxigênio necessário à economia real moribunda. Cortando-se este suprimento o paciente pode morrer, e os agentes do Estado e do mercado sabem muito bem disso, daí o insucesso das tentativas recentes de aplicar regras mais rigorosas na regulação.

É, portanto, a crise da economia real, que ao gerar a necessidade de circulação de dinheiro sem substância para manter as aparências de que o valor não sofreu descontinuidade e continua em seu movimento de valorização, quem alimenta a formação de capital fictício e o surgimento das pirâmides financeiras. Quando olhamos acuradamente as engrenagens do capital financeiro que sustenta precariamente o funcionamento do capitalismo mundial, veremos que a caixa mágica de Bernard Madoff, não é nem mais, nem menos absurda do que o sistema que a gerou.

14.12.2010

segunda-feira, novembro 22, 2010

A debacle do Panamericano, banco do grupo Sílvio Santos e o momento econômico

Rall

Há alguma relação entre a contida falência do banco Panamericano e a situação da economia mundial?

A surpresa foi total, dos contribuintes do baú da felicidade aos renomados analistas, todos perplexos perguntaram-se como pode um banco de um grupo aparentemente sólido ter que ser socorrido de um rombo de mais dois e meio bilhões de reais para não falir! Do espectador passivo, que recebe como verdadeiras as imagens escolhidas e repetidas pela mídia (para não esquecer Derbord), em que na tela, o principal proprietário desse grupo, distribui espetacularmente dinheiro e convence os seus seguidores que consumindo suas mercadorias estão comprando bilhetes premiados da felicidade, não se poderia esperar manifestação diferente. Para os analistas, habituados a palpitar com tanta segurança sobre os fundamentos da economia brasileira, a surpresa é um momento de estranhamento entre suas convicções e o comportamento dos fatos econômicos que fogem ao esperado, mesmo que tais fatos aparentem uma manifestação isolada da fraqueza de uma empresa. Isto os leva a ver apressadamente, na malversação dos recursos por interesses particulares à única causa da derrocada de uma empresa.

Os executivos dos bancos, corretores e gerentes, da mesma forma que os agentes de qualquer outra instituição não financeira, não separam seus interesses privados dos interesses das empresas para a qual trabalham. Podemos afirmar que é isso que os motiva. Acreditam alguns analistas que estes podem exceder os limites aceitáveis e levados por incentivos, enveredarem pelo chamado “risco moral”, quando de posse de informações privilegiadas se beneficiam financeiramente em detrimento dos acionistas e dos proprietários. É o problema das informações assimétricas que quando não controladas pode matar a galinha dos ovos de ouro, situação geralmente associadas à má gestão. No entanto, no capitalismo não há uma questão ética, mas de acumulação de capital. O termo “risco moral”, expressa, de forma incompleta, como se manifesta à superfície dos fatos a lógica cega que move os agentes econômico, "a valorização do valor como sujeito automático da sociedade (Marx).”

Mas as dificuldades dos pequenos bancos não devem estar só relacionadas com a usura de poucos e a incompetência gerencial como quer a grande imprensa. Pode ser um agravante, sem dúvida, porém não se deve esquecer que com o encarecimento do dinheiro nas operações interbancárias em 2007 e 2008, associado a apostas ariscadas anteriores a este período, praticadas livremente por todos, deve ter afetado profundamente os balanços dos pequenos bancos. O repetido discurso oficial de que os bancos brasileiros são suficientemente sólidos e estão preparados para enfrentar a instabilidade financeira que assola o mundo não é verdadeiro(1). Os primeiros desmentidos vieram da forçada fusão do Itaú com o Unibanco, cujo real motivo, o efeito da crise, só recentemente foi revelado por um diretor do Banco Centra, logo em seguida demitido, em matéria publicada no Jornal Valor Econômico.

As crises financeiras se propagam em ondas pelo globo. Atingem de forma desigual na intensidade e no tempo países e continentes, dependendo da integração de suas economias. Em certos momentos, águas que pareciam calmas tornam-se revoltas como agora assistimos na Europa. No Brasil, os diques velozmente erguidos pelo Governo com as estacas dos bancos estatais, para impedir que as ondas açoitassem com mais força a economia local, nem por isso deixou de fazê-lo. É só lembrar, entre outras, os enormes prejuízos com derivativos que atingiu grandes empresas e forçou a fusão da Sadia com a Perdigão. Mas no sobe e desce do balanço contínuo, os diques estatais podem soçobrar à energia das ondas, transbordando ou rompendo-se por não suportar a pressão. A debacle do Panamericano pode ser o primeiro sinal. As dificuldades no câmbio na luta feroz pelos mercados, agravadas pelas recorrentes emissões de dinheiro sem substância pelo Fed e o endividamento público das nações sem precedente em tempo de paz, tende intensificar mais ainda a força destruidora crise financeira mundial. E o que parecia uma “marolinha” para o atual Presidente, pode transformar-se em um tsunami para sua sucessora.

(1) O Brasil está imune à crise?

21.11.2010

segunda-feira, outubro 25, 2010

Tropa de elite e a degradação do Estado

Rall

O filme do diretor José Padilha, busca mostrar a violência que grassa os aparelhos de segurança do Estado, associada a uma corrupção crônica que se estende ao Executivo, Legislativo e, menos evidente, ao Judiciário. O filme se desenrola contando a história das milícias do Rio de Janeiro, que surgem a partir da relação de militares com o crime organizado. Observam que os criminosos montaram nas favelas uma eficiente empresa que se ocupa não só da venda de drogas, mas também do monopólio da distribuição de gás, venda de ligações clandestinas de TV a cabo e de outros lucrativos comércios. Os policiais de um batalhão, não satisfeitos com o valor da propina paga pelo tráfico, resolve tomar uma favela e assumir o comércio dito informal, expulsando os traficantes e instituindo um Estado paralelo, com cobrança de “impostos” para garantir a segurança do cidadão.

Não demora e o achado que promete “segurança” à população e muito dinheiro para os envolvidos, chega ao núcleo do poder político (1) cujos membros se aliam as milícias e passam a ordenar a ocupação das favelas pelas tropas de elites, deixando o território livre para instalação de bandos armados, acobertando o crime organizado gestado nas corporações militares. Os políticos ganham com a repercussão manipulada dos fatos e com a divisão do butim. Apesar de o filme tentar retratar a situação particular do Rio de Janeiro, capta uma realidade mais geral em movimento, não restrita só aos Estados brasileiros, mas que hoje atinge todo o mundo globalizado. Daí uma das qualidades do filme como obra cinematográfica.

A crise pela qual passa a sociedade capitalista tem evidenciado o quanto Estado e mercado se complementam inclusive na bandalheira. Os trilhões de dólares e outras moedas transferidas pelos estados em todo mundo para cobrir os prejuízos do mercado com papéis podres e pirâmides financeiras mostra que a lógica é a mesma, só muda a forma: fazer dinheiro, mesmo que fictício, sem importar-se o custo humano e social.

A concorrência que se acirra com a intensificação da crise de acumulação real de capital, assume na sociedade burguesa uma dimensão espantosamente destruidora, incapaz de ser contida em seus excessos por um Estado cada vez mais contaminado por essa lógica. Portanto, a degradação do Estado que o distancia de sua forma “ideal” é o reflexo das taras de uma sociedade em profunda crise que atingem todos seus interstícios. Estado e mercado, que são partes do todo que constituem a sociedade burguesa, apesar de em alguns momentos passarem por violentas tensões resultantes das contradições inerentes, não vivem um sem o outro e alimentam-se mutualmente em sua miséria, movidos pelo fetiche do dinheiro venerado por todos. A loucura do mercado financeiro não está desacoplada da economia real como muitos desejam e (ou) como tenta convencer outro filme, “Wall Street 2: O dinheiro nunca dorme” , mas tem na crise de “valorização do valor” da economia real sua causa fundamental.

Como sair disso e nos livrar da barbárie? Com certeza não através do Estado burguês, que se degenera em grupos mafiosos violentos e nem sequer consegue mais administrar a crise, como deseja uma esquerda que se alimenta de literatura e conceitos mofados no tempo e é incapaz de romper o arcabouço ideológico ao qual estão amarradas suas fantasias. Se a crítica social não quiser sucumbir ao totalitarismo da mercadoria que nos sufoca, tem que dirigir suas baterias às formas existentes, abrindo frestas em todas as frentes para que se enxerguem outras formas de organização em formação capaz de superar o estado de coisa em que vivemos, antes que seja tarde demais para se alcançar uma verdadeira comunidade humana.

Esperamos que o próximo filme da série, o Capitão Nascimento, apesar das expectativas, não seja transformado no herói capaz de realizar a limpeza ética do Estado, que regenerado, coloca-se pronto para extirpar pelo uso da força as pontas podres do sistema. Pois essa coisa estranha e fora de controle chamando “sistema”, é a expressão de força de um Estado capitalista cada vez mais armado contra os indivíduos e a possibilidade de uma sociedade solidária, planejada e construída a partir das reais necessidades humana. Seria melhor manter nos filmes vindouros a crítica negativa aberta do que buscar um final feliz, que anestesia com imagens espetaculares a possibilidade de reflexões.

(1) Da doce ilusão à consentida mentira

25.10.2010

domingo, outubro 10, 2010

A crise aproxima-se perigosamente do câmbio

Rall

As medidas dos governos em defesa dos mercados domésticos que tem levado a variações cambiais, sinalizam que a unidade em torno do enfrentamento da crise começa a se desfazer com a esperada retomada do crescimento econômico derrapando nas dificuldades estruturais. A chiadeira é geral: reclama-se da China que administra burocraticamente o yuan, garantido uma certa estabilidade frente a uma cesta de moedas, principalmente ao acompanhar as seguidas desvalorizações do dólar. Fala-se na necessidade de valorização do yuan permitindo um equilíbrio nos preços dos produtos das exportações chinesas que vem arruinando as indústrias dos países em desenvolvimento e dificultando a retomada da produção nos países desenvolvidos ao inundar o mundo com mercadorias baratas. Oferecem como sugestão que a China estimule o mercado interno de tal forma que o mesmo seja capaz de absorver as mercadorias que vão para fora e também o excedente de países desenvolvidos. Sugestão que não precisa de um observador muito atento à economia chinesa para entender a impossibilidade da criação desse tão cultuado mercado local nas condições dadas.

Tal desejo dos “formuladores” das políticas econômicas dos países do centro não se restringe a China, é estendido a todos os países ditos emergentes com saldo na balança comercial. Acredita-se que chegou a hora de se inverter a lógica dos circuitos deficitários, ou pelo menos de se buscar um equilíbrio mais justo nas transações comerciais corrigindo-se as distorções. É nesse contesto que devem ser analisadas as atuais ondas desvalorização do dólar.

A trajetória de queda do dólar no tempo deve-se a um conjunto de variáveis complexas. Está relacionada com a crise do dinheiro em geral que se torna mais evidente nesta moeda pelo papel que exerce de equivalente geral, cuja única âncora que lhe garante esta função com o fim da paridade ouro/dólar, passa a ser poder político/militar americano. Quando se analisa a história do dinheiro após a segunda guerra mundial, o dólar na função de dinheiro universal expressa melhor a desvalorização das moedas levada a efeito pelo aumento da produtividade, que diminui o “tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias (Marx)”, induzindo a corrosão do valor e a consequente queda dos preços dos produtos. Enquanto “mercadoria rainha”, o dinheiro tende a acompanhar a desvalorização do valor no tempo independente das variações conjunturais. Nos mercados financeiros o dinheiro que rende juros, autonomizado em relação à produção, perde seu “status” e é transacionado como uma vulgar mercadoria. Empacotado com papéis de cores diferentes atende do mais simples ao mais refinado gosto dos investidores. Dessa forma, o dinheiro ao se multiplicar descolado do processo real de valorização gera capital fictício. Como o preço das mercadorias que oscila ao sabor das conjunturas, nas relações de mercado o dinheiro flutua em variadas situações.

São, portanto, diversas as circunstâncias que levam as moedas a flutuarem umas em relação às outras, independente da queda do valor das mercadorias pelo aumento da produtividade. Em relação ao dólar pode-se afirmar que estão relacionadas com os interesses americanos enquanto superpotência econômica e militar. Na situação atual, a fraqueza e a tendência à deflação da economia americana, mostram-se como importantes elementos que pressionam o dólar para baixo. Mas são as medidas que buscam conter esta situação, como o afrouxamento monetário com emissão sem precedente de dólar para salvar bancos e conglomerados empresariais, o principal responsável pela perda de força dessa moeda. A inflação do dólar por esse mecanismo, se por um lado busca salvar empresas e reativar o crédito, por outro repercute nas importações e exportações americanas com as alterações no câmbio.

As mudanças cambiais nos EUA repercutem em todo mundo por ser este País o maior sorvedouro de mercadorias do planeta vindas praticamente de todos os cantos da terra e por ter o dólar à função de moeda universal. Quando o dólar recua em relação às demais moedas, os produtos americanos tornam-se mais competitivos e as exportações tendem aumentar. Esse fato, porém não é verdadeiro para países que mantém sua moeda desvalorizada artificialmente por estar atrelada ao dólar como acontece com a China. Nos câmbios flutuantes, os governos geralmente superavitários, tendem a se protegerem comprando dólar e formando reservas gigantescas nessa moeda, praticamente não remuneradas que se desvalorizam. O excesso de dinheiro sem substância emitido, não absorvido pela produção e consumo nos países do centro, vem fluindo para países da periferia do capitalismo, agravando os desequilíbrios cambiais com a valorização das moedas e formando bolhas nesses mercados que não deverão se sustentar por muito tempo.

O Brasil é o exemplo mais contundente desse fenômeno. Apesar da defesa que se faz dos bons “fundamentos da economia” (o que se quer dizer com isso numa economia globalizada?) quando se trata de exportação, observa-se que na relação entre bens industriais e produtos primários o pêndulo vem se deslocando no sentido dos últimos(1). A perda de competitividade da indústria brasileira relacionada com a baixa produtividade, infraestrutura precária, agravada agora com os desequilíbrios cambiais salta aos olhos. A saída via desvalorização do Real por medidas administrativas ou pelo previsto déficit na balança comercial nos próximos anos, pode se mostrar insuficiente para enfrentar a enxurrada de mercadorias vindas de toda parte do mundo, principalmente da China. Com os ânimos acirrados os interesses nacionais tendem prevalecer e fica difícil um acordo global para o câmbio como assim desejam o FMI e alguns governos.

Na China dois fenômenos manifestam-se com maior visibilidade. Pelo fato do yuan estar atrelado ao dólar, a queda deste leva a desvalorização da moeda chinesa em relação as demais, deixando seus produtos arrasadoramente competitivos quando comparados com de outros países. As mercadorias da “fábrica do mundo”, como assim é chamada a China, invadem mercados e desestruturam parques industriais em todo mundo, principalmente nos países menos desenvolvidos, compensando com isso a redução das vendas para os EUA. Por outro lado, as empresas americanas, apesar de expandir suas vendas externas favorecidas pelo câmbio, não conseguem competir internamente com os produtos chineses devido a desvalorização administrada do yuan e aos baixíssimos salários pagos aos trabalhadores, fórmula utilizada pelo governo chinês para compensa a baixa produtividade de suas indústrias e que o leva a resistir em aplicar medidas de correção do câmbio via valorização da moeda. A redução da entrada de mercadorias chinesas nos EEUU deve-se fundamentalmente ao encolhimento desse mercado com o estouro da bolha financeira.

Reverter esse quadro das relações comerciais sino-americana onde os interesses se imbricam e se conflitam, não será fácil. E entre os maiores interessados para que nada mude, além do Governo chinês estão às empresas do Japão, da Europa Ocidental e, principalmente, dos Estados Unidos instaladas na China com destino certo para suas mercadorias. Num imbróglio deste, com as trocas internacionais enfraquecidas pela redução do consumo e onde todos forçam a barra para colocar o excedente de sua produção no quintal do outro mesmo a preços módicos, a possibilidade de graves crises cambiais em países onde as moedas continuam se valorizando em relação ao dólar é uma questão de tempo. Tudo vai depender dos próximos lances na busca de acomodação dos interesses da “fábrica do mundo” e do maior mercado consumidor do planeta.

Se chegarem a um acordo é possível que a conta seja paga pelos outros. Os países mais pobres amargarão com os maiores prejuízos. Mas se o confronto se acirrar e o dólar continuar em queda livre, acompanhado de perto pelo yuan, o mercado mundial pode travar ainda mais as trocas com medidas protecionistas, com sérias repercussões na já cambaleante economia. Aí o salto não será em W como querem alguns analistas, mas num precipício aonde a escuridão não permite que se enxergue onde pousar.

(1) A tendência da indústria brasileira

10.10.2010

sábado, setembro 18, 2010

Na corrida pela produtividade o capital seca a fonte que o alimenta

Rall


Em tempos de Terceira Revolução Industrial a efemeridade das tecnologias é a norma. Uma plataforma de produção assentada para aumentar a produtividade de uma determinada indústria, ao entrar em funcionamento já se torna obsoleta. Geralmente, quando requisitada por outra indústria concorrente, inovações são introduzidas de tal forma que quando o ciclo se completa num determinado ramo de produção, a indústria que adquiriu a primeira plataforma da série é obrigada a se renovar tecnologicamente para que possa ficar em pé de igualdade em relação à produtividade e não ser expulsa do mercado pelas concorrentes. Nesse processo, a destruição e a criação de empregos ocorrem em velocidades diferentes e o resultado da racionalização é sempre um saldo negativo para o número de empregos novos que surgem.

A desvalorização do capital tende a acentuar-se na medida em que menos trabalho abstrato é absorvido na produção de mercadorias. Nos momentos de agudização da crise da acumulação real como a que vivemos agora, além do agravamento do desemprego pela redução do ritmo da economia, observa-se alguns fenômenos incrementados pela concorrência, que em sua aparência pode levar a intepretações equivocadas. Vejamos o que vem sendo observado na oferta de vagas no mercado de trabalho americano: “O índice de criação de vagas, ou seja, uma medida do número de empregos disponíveis em relação ao total de vagas na economia – ocupadas ou vazias - subiu de 1,8% um ano atrás para 2,2% em 2010, em vez de cair ainda mais, como era esperado. Apesar disso o desemprego aumentou no mesmo período”.

As vagas disponibilizadas numa velocidade maior do que o esperado pode ser um indicador de que as indústrias buscam agora sair da crise aumentando a produtividade, acelerando a introdução de novas tecnologias. Como o mercado de trabalho leva algum tempo para se adaptar as mudanças tecnológicas introduzidas com grande agilidade, “sobram” empregos em alguns ramos de produção. O que não se enxerga quando se fala de vagas “sobrando”, é que o balanço entre empregos criados e destruídos é negativo para empregos criados com as inovações tecnológicas. Esse fenômeno, observado de forma mais evidente na economia americana e pouco entendido por alguns analistas, mostra que a crise, ao acirrar a concorrência, leva os capitais individuais a buscar na renovação tecnológica a saída para baixa rentabilidade. Agravam, porém, no médio prazo, as dificuldades de acumulação do capital total pela racionalização do trabalho abstrato na produção global.

A rápida retomada da indústria de automação, cujas encomendas não param de crescer contrasta com uma economia mundial cambaleante. As medidas de demissões em massa da força-de-trabalho como aconteceu no apogeu da crise, cede lugar a uma dispensa mais planejada, porém permanente ao se buscar outros níveis de produtividade pela intensificação do capital constante (1). O barateamento das mercadorias pelo excesso de produção e por uma nova onda de produtividade, não deverá ampliar suficientemente o mercado de tal forma que permita uma retomada autônoma da acumulação do capital pelo aumento do consumo, pois acompanha esse processo uma grande redução da utilização global do trabalho vivo criador de mais-valia.

O que pode acontecer nessa fuga solitária das empresas na direção de uma maior produtividade, empurradas pela acirrada concorrência, são as mais ágeis e eficientes destruírem suas rivais e, consequentemente, postos de trabalho, mantendo individualmente uma vantagem provisória em relação ao lucro, que logo desaparece quando a nova técnica de produção se generaliza e faz cair os preços das mercadorias. Portanto, com o agravamento da crise de valorização do valor na economia real, para manter o seu artificial movimento de acumulação simulada, a economia mundial exigirá do Estado e do mercado a geração constante de capital fictício em bolhas cada vez mais curtas e destrutivas.

(1) A bolha estatal na longa jornada da crise

18.09.2010

sábado, agosto 21, 2010

A complexidade da crise confunde governos e analistas

Rall

As notícias sobre a crise que começaram a escassear voltam às páginas dos jornas com a queda global da produção industrial, a percepção do agravamento das dificuldades financeiras de estados europeus e os indicadores negativos do mercado de trabalho da América do Norte. A instabilidade das bolsas, com seu humor bipolar que reflete as incertezas conjunturais, mostra quão pouco é o controle que se tem sobre os fatos econômicos. Num primeiro momento parecia para os desavisados, que a entrada do Estado em cena em socorro ao seu irmão siamês, o mercado, tudo estaria resolvido. Agora, sem que os problemas do mercado tenham sido solucionados, apesar dos trilhões de dólares fabricados e despejados pelos bancos centrais ao redor do mundo, a crise assume uma feição mais grave, pois sem que a economia tenha se recuperado, as ações de socorro dos estados ou se esgotam ou simplesmente deixam de existir pelo colapso financeiro que os atingem.

Torna-se monótono a ladainha dos analistas oficiais sobre a crise, que aparenta na grande imprensa a retomada autônoma da acumulação, apesar da marcha lente da produção e do comércio nos EUA e Europa. A crise parece ter sido superada quando vista pelo olhar de observadores confiantes no desempenho dos países em desenvolvimento. Fatos novos que abalassem esta fé pareciam distantes. No entanto, enquanto o tilintar dos copos festejam o futuro promissor, desconsiderando um tumultuado passado e sem querer olhar as dificuldades do presente, forças tectônicas destruidoras acumulam-se velozmente em todas as direções enquanto se estreitam a possibilidade de novas intervenções para conter abalos no mercado que possam empurrar a economia no precipício.

A forma de manifestação da crise tende ser diferente nas diversas economias, apesar da essência ser a mesma: a crise da valorização do valor na economia real. Isso ficou claro no último encontro do G20 onde o que parecia consenso no enfrentamento da crise, transformou-se em divergências entre os Países Europeus e a América, principalmente entre EUA e Inglaterra, em relação à manutenção dos estímulos estatais e aplicar ou não planos de ajuste a dívida pública. É possível às economias se auto-sustentarem sem as transferências maciças de recursos dos Estados para os mercados? Apesar de aparentar o contrário, a maioria das autoridades financeiras acredita que não, ou, timidamente, defende a redução do déficit público carregada de dúvidas sobre a possibilidade de uma retomada autônoma da acumulação.

A questão, porém, é que o déficit público na maioria dos países fez crescer de tal forma a dívida pública que pode levar a insolvência e consequentemente ao calote, Estados tidos antes como seguros para o mercado. Os primeiros sinais desse novo fenômeno da crise vieram da Europa, sendo a Grécia, por ser parte do elo mais frágil, a primeira vítima. Outros virão na esteira destruidora da crise, não importa o tempo. A Europa, que pela história passada da dívida pública associada à hiperinflação e também a guerra, tende a lidar de forma diferente dos EUA quando se trata de déficits. A experiência americana é outra. Na segunda guerra mundial a dívida pública superou 100% do PIB, mesmo assim, no pós-guerra, o País continuou com crescimento acelerado e reduziu significativamente a relação dívida/PIB. Essa história aparentemente bem sucedida mantém-se viva na memória desse povo. Há sempre, porém o risco de histórias passadas se repetirem como farsa.

Não tendo em que se segurar por ter esgotado todas as possibilidades das políticas neokeynesiana e monetarista, os Governos dos países desenvolvidos, principalmente o americano, passa acreditar no impacto que as reformas financeiras e as regulações resultantes destas deverão trazer na movimentação do capital. Há a esperança de que os capitais saiam da especulação e aporte na produção. O capital aporta onde lhe oferece rentabilidade, a vontade dos governos não será suficiente para que este mude de rumo. Sua enlouquecida movimentação nos mais recônditos cantos do globo é determinada pelo ilimitado desejo de se multiplicar. E se não é isso que lhes oferece a economia real, vai continuar em seu movimento especulativo, mesmo que aí só se gere capital fictício e bolhas financeiras prontas para estourar. O desenrolar misteriso da crise tem mostrado que o homem não controla os fatos econômicos que agem às suas costas, apesar de terem sido induzidos pelas ações do própio homem.

21.08.2010

segunda-feira, maio 17, 2010

A crise, insensível aos apelos por moderação, segue seu caminho

               Vira-lata na linha de frente de protesto em Atenas
     
Rall                                      

Era previsível que o rompimento da bolha estatal em formação acontecesse nos elos mais frágeis da cadeia dos Estados endividados. O tempo não mais surpreende na medida em que a tendência do capitalismo, em crise de valorização do valor, é gerar e estourar em seus interstícios bolhas de capital fictício, em espaço de tempo cada vez mais curto.

Os países com dívidas crescentes, formadas para compensar os estragos feitos na economia pelas bolhas imobiliárias e de crédito, tem na Grécia uma imagem do que pode ser seu futuro próximo. As dívidas dos países ricos já atingem soma astronômica de 43 trilhões de dólares segundo a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a maior da história para um PIB mundial de aproximadamente 57,9 trilhões de dólares conforme dados do FMI (Fundo Monetário Internacional). Ou seja, a dívida desses países corresponde a 75% do que é produzido no mundo em um ano.

A formação da dívida dos Estados, intimamente associada à geração de capital fictício, funciona mais ou menos assim nos períodos de crise: os Estados, além de aumentarem seu consumo “abrindo e fechando buracos” (Keynes), emprestam a juros zero ou compram papeis podres de empresas e bancos. Artificialmente irrigados, os bancos destinam parte desse dinheiro ao crédito, mas o grosso termina de fato alimentando novas bolhas no mercado, as filhas do dinheiro estatal, como as de commodities, ações, operações de câmbio, derivativos e especulação imobiliária.

Outra parte, em alguns países nada desprezíveis, termina voltando às contas dos governos na forma de empréstimos, agora com juros positivos que beneficiam os bancos e aumenta a escalada da dívida pública. Esses são os mecanismos mais visíveis de criação de capital fictício, que vem operando após o estouro das bolhas do mercado, cujos limites são determinados pelo tamanho das dívidas dos Estados.

O problema é que a dívida “soberana” já atingiu seus limites em alguns Estados e está próxima disso em outros, sem, no entanto ter a economia mundial dado sinais de numa nova acumulação autônoma do capital. Tirar o dinheiro estatal do jogo simulado da acumulação pode empurrar a economia no precipício. Manter a dinâmica atual de financiamento público dos mercados com arrecadação em queda deverá levar outros Estados ao colapso, de forma talvez até mais grave do que estamos presenciando na Grécia. Para os países com dívidas em moeda estrangeira ou aqueles que compartilham uma mesma moeda, a deflação é uma possibilidade resultante do dramático arrocho interno. Para os detentores de moeda própria o risco imediato é a inflação. No entanto, dependendo dos fatos conjunturais, a mudança de uma situação para outra pode ocorrer rapidamente no tempo.

Os trilhões em euro e dólares emprestados pelos bancos aos Estados até 2008, quando o capital financeiro gerado pelas bolhas do mercado era farto, e as dívidas mais recentes das medidas anti-cíclicas, tornam-se impagáveis e vem sendo rolados a juros exorbitantes à medida que a situação se agrava. Com isso os bancos privados em pânico, imploram socorro aos bancos centrais ainda em condições de emitirem moeda com alguma segurança (Banco Central Europeu e Federal Reserve) e ao FMI.

Essa realidade díspar tem levado a apelos contraditórios: ora exige-se que os bancos centrais despejem mais dinheiro para diminuir a fúria especulativa e salvar os Estados insolventes e, por conseguinte, os bancos privados com estes comprometidos, como agora presenciamos na mobilização da União Européia que disponibilizou 750 bilhões de euros para este fim. Em direção contrária, apela-se pela imediata redução dos déficits fiscais em crescimento vertiginoso para que a crise da dívida pública não se alastre sem controle, como tem advertido os organismos internacionais.

Estreitam-se rapidamente as margens de manobra dos Estados e do mercado para se ajudarem mutuamente. A dualidade estado/mercado, que mascara a lógica totalitária do capitalismo escondida pelo denso nevoeiro da aparência, torna-se tênue, deixando os irmãos siameses ainda mais parecidos na caminhada implacável da crise, cujo desfecho ainda está por vir.


17.05.2010

terça-feira, abril 20, 2010

Grécia, Brasil e outros rincões...

Rall


A crise do Estado grego trouxe à tona as diferenças na Zona do Euro e a questão da competitividade. Repetidas vezes foi noticiada que a baixa competitividade desse país estava associada a salários relativamente altos, quando considerado a produtividades de suas indústrias , que deixam seus produtos relativamente caros se comparados com similares produzidos na Alemanha e França e em alguns outros países que adotaram o euro. Como surtos de produtividade não se dão em passe de mágica, a exigência dos sócios ricos (Alemanha e França) para emprestar dinheiro e evitar a insolvência, foi de que o governo grego teria de compensar a baixa produtividade cortando despesas, mas, fundamentalmente, racionalizando trabalho e reduzindo salários, utilizando-se de meios sobre os quais o governo acredita ter controle, inclusive aqueles que possam desencadear processo deflacionário, com risco de grave contração econômica.

A forma como vem se manifestando a crise dos países menos ricos que adotaram o euro, vinha em gestação desde a criação da moeda única. Apesar dos fartos recursos liberados para investimentos, principalmente em infra-instrutora, quase nada foi feito para corrigir a distância tecnológica que separa os países do centro dos mais periféricos. Se considerarmos as relações comerciais da Alemanha superavitária com os países da Zona do Euro com déficits em conta-corrente, todos tiveram seus mercados invadidos por mercadorias mais baratas vindas desse País altamente industrializado e de outros concorrentes de fora da Europa menos produtivos, porém competitivos pelos baixos salários pagos. Parte desses produtos importados são “bens de capital”, mas o grosso são mercadorias triviais, de consumo imediato, que ao substituir produtos nacionais podem levar desindustrialização.

Tem sido prática no comércio mundial usar a desvalorização do câmbio como recurso para fazer frente aos déficits nas balanças comerciais, além das medidas internas de redução de custos de produção e despesas do estado. É sempre um recurso provisório, que se não acompanhado de aumento da produtividade perde-se no tempo. Mas, como nos países de moeda única não é possível a utilização desse artifício, e como o arrocho nos países em dificuldade não será suficiente para o reequilíbrio financeiro, resta saber se os mais competitivos vão querer inflacionar os preços de seus produtos com aumentos salariais como defende alguns analistas, reduzindo com isso o lucro de suas empresas e o superávit comercial, mesmo considerando-se um possível aumento do consumo com ampliação do mercado interno.

Países em atraso tecnológico tornar-se-ão competitivos em médio prazo, se, ao utilizarem a produtividade possível de suas empresas, associá-las a uma exploração brutal da força de trabalho. Foi assim na história recente do capitalismo dos “tigres asiáticos”, do Brasil dos militares, do Chile de Pinochet, só para citar alguns exemplos. O que existe em comum são as interferências repressivas nas relações de trabalho e o "subsídio" ao capital pelo Estado com recurso arrancado à força da sociedade em favor das empresas privadas ou estatais para compensar a baixa produtividade, fórmula que ainda hoje faz sucesso na tão contemplada China e em outras nações menores citadas como exemplo de capitalismo que dá lucro.

Mas mesmo aonde não é possível a ditadura política ou militar, o estado democrático, cego pela concorrência, entra com a função de faxineiro do capital, desregulamentando a legislação trabalhista e reduzindo os benefícios sociais, vistos como barreira a acumulação e a produção de mercadoria barata para o mercado mundial. Com o persistente desemprego e o movimento sindical a fazer concessões sem limites, o capital que reina absoluto, com o respaldo do poder estatal (sempre é bom frisar), faz o resto na busca incessante da autovalorização, não importa os meios a serem utilizados.

Portanto, não é só na China que se observa o retorno da mais-valia absoluta através da extensão da jornada de trabalho e contenção salarial com o apoio do estado autoritário. No Brasil, como em muitos outros países democráticos, o alargamento da jornada de trabalho, com ou sem uso de horas extras, e a prática de rotatividade no emprego são utilizadas sem nenhum limite pelas empresas para anular qualquer ganho salarial e compensar a queda da rentabilidade. Para aquelas profissões onde o impacto da racionalização é mais sentido e existe um forte excedente de força de trabalho no mercado, a redução salarial pra os trabalhadores mais antigos pode ser superior a 50% nos períodos de dissídios.

O pacote de resgate financeiro que vem sendo montado, tendo a Alemanha como principal fiador, pode evitar em curto prazo a insolvência da Grécia, mas não resolve o problema de base que vem aumentando as desigualdades e a dívida pública dos países europeus: a dificuldade de acumulação da economia real em todo mundo(1). A luta feroz dos países para manterem suas posições econômicas no cenário internacional esbarra nesse limite, e têm no reaparecimento da mais-valia absoluta e das bolhas financeiras os sintomas mais visíveis da crise sistêmica do capitalismo.

(1)O pior já passou? Um "sim" ecoa afoito no mundo dos negócios

20.04.2010

domingo, março 07, 2010

A Europa do euro mostra as suas desigualdades

Rall


A crise na zona do euro mostrou o que vinha sendo encoberto nos anos das vacas gordas: as desigualdades entre as nações que são partes desse território. O euro surge como um passo a mais na direção da unificação do Mercado Comum Europeu. Deixando de lado as implicações políticas da unificação, que devem ser levadas em consideração em uma região que foi o palco de duas guerras mundiais, o euro surgiu como reforço ao protecionismo econômico, que beneficia principalmente a Alemanha e em seguida a França. Pode ser entendido como um movimento da Europa moderna posicionando-se em relação à globalização, mas também como uma força à integração do mercado mundial. Num momento de dinheiro farto, os países mais periféricos foram favorecidos com um grande aporte de recursos que impulsionou suas economias. Mas, quando a fonte secou, foram os primeiros a sentirem o impacto, pois, já endividados, com o agravamento da crise se viram obrigados a aumentar a dívida pública sem nenhuma salvaguarda externa.

O endividamento da Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e dos países do Leste Europeu, que com o espasmo da crise sistêmica ameaçam perigosamente ultrapassar ou já ultrapassaram o valor do PIB, têm efeito bem mais perverso do que as dívidas dos países do centro da zona do euro. São parcos os recursos e forças que dispõem para enfrentarem as apostas da especulação financeira. O que é exigido pelos guardiões do euro para reequilibrar as finanças, o rebaixamento salarial e cortes nos benefícios, são medidas que se aplicadas podem ser inviabilizadas politicamente pela esperada resistência dos atingidos.

Fica evidente na ameaça de implosão da dívida “soberana”(1), a distância tecnológica entre alguns países do euro, com impacto na produtividade. Isso se reflete nas diferenças salariais que apesar de não serem tão grandes quando comparadas com as de países como a China, existem e são significativas quando confrontamos a situação dos salários pagos em Portugal, Grécia, Eslováquia, Eslovênia e mesmo na Espanha, com os da Alemanha e França entre outros. Critica-se a evolução do custo da hora trabalhada na Grécia nos últimos anos, mas esconde-se o fato de que se paga por hora trabalhada neste País bem menos que na Alemanha. O contra-argumento é que a produtividade na Alemanha permite níveis salariais diferenciados.

Daí vem o remédio amargo para a solução das tensões trazidas pela dívida desses Estados: arrocho salarial e corte nos benefícios sociais, para que seus produtos com a redução de custos tornem-se competitivos enquanto não melhora a produtividade. Mas será possível alcançar níveis de produtividade próximo dos trabalhadores alemães que permitam uma recuperação salarial? Só se o parque industrial e o Governo alemão ficassem parados esperando que os outros o alcançasse. Mas não é essa a lógica entre empresas e países capitalistas. O veneno da competição, entranhado na alma da sociedade da mercadoria, permite a cooperação até certo limite. Quando é possível os mais atrasados se aproximarem do nível de produtividade dos mais avançados, estes últimos já deram um salto e se distanciaram dos parentes mais pobres intensificando o capital constante, mesmo que tenham que dispensar o último trabalhador da produção com as inovações tecnológicas.

Pode-se argumentar que as empresas dos países mais avançados optem em migrar para aqueles que oferecerem salários baixos levando tecnologia e, conseqüentemente, melhorando a produtividade e salários. De fato isso tem acontecido. Porém, apesar da melhoria da produtividade em alguns ramos industriais, a produtividade geral continua bem abaixo da dos países de onde migraram essas empresas. A China é o exemplo mais contundente dessa realidade. Apesar da transferência de tecnologia com a migração de empresas principalmente do Japão e EUA, só consegue ser competitiva no mercado global pelos baixíssimos salários pagos aos trabalhadores em regime de semi-escravidão e pelo câmbio administrado que mantém o yuan artificialmente desvalorizado. Se partirmos de um ponto zero, a produtividade média do trabalho na China é de 67, Japão 428, EUA 434 e Reino Unido 458*.

Mesmo sendo a China e similares o melhor dos mundos para o capital, onde a mais-valia relativa e absoluta trabalham juntas na acumulação, é impossível por razões diversas a transferência de todo um parque industrial de uma nação para tais oásis do capitalismo, principalmente as empresas de alta tecnologia onde, na contabilidade destas, o trabalho pouco pesa nos custos finais dos produtos se comparado com o capital fixo empregado. O movimento de capitais nos mercados comuns, sempre em busca de maior rentabilidade, pode ter algum êxito como tentativa de defender-se dos outros, mas não de si mesmo: devoram-se do mesmo jeito na briga pela valorização.

*Fontes: Bloom, Mahajan, McKenzie e Roberts (2010)

(1) A bolha estatal na longa jornada da crise

07.03.2010

segunda-feira, janeiro 25, 2010

O despertar de um inflamado dragão chinês

Rall

O mais festejado país do grupo denominado de BRIC, a China, começa a dar sinais de que o crescimento em pleno espasmo da crise mundial tem pés de barro. Do quarteto, quem de fato tem certo peso na engrenagem da economia mundial é a China e, em seguida bem distante, a Índia. No entanto, não se compara em importância às economias americana e européia, que continuam na lona apesar dos trilhões de euros e dólares despejados pelos bancos centrais. Mas, é na China que a grande esperança é depositada como alavanca que possa movimentar a economia mundial. Grande importadora de commodities, a mágica produtora de mercadorias para o mercado mundial cujos preços finais não pagam os custos de produção em outros países, da China está sendo esperada a reversão do caos econômico instalado e seus dirigentes acreditam nisso.

Tanto acreditam no poder mágico de sua economia que dizem fazer “dançar as cadeiras”, que despejaram até agora 9,590 trilhões de yuans no mercado interno, na “maior flexibilização monetária da história” segundo alguns estudiosos, como forma de compensar a queda das importações americanas, ampliando o mercado interno, e animar a economia mundial. Parte desse dinheiro foi para os bens de consumo de luxo, como automóveis, para infraestrutura que teve investimentos antecipados, para setores produtivos com retorno duvidoso, agravando o excesso de capacidade produtiva, um problema já presente nas indústrias chinesas. Mas, acredita-se que o grosso destinou-se a especulação imobiliária. Em Pequim, nos últimos 12 meses, os preços de imóveis de aproximadamente 65 m², os mais procurados, duplicaram ou triplicaram conforme o bairro. Em outras cidades chinesas a situação não é diferente, e vem sendo estimulada pela venda de terrenos públicos pelas prefeituras para cobrir déficits orçamentários. Estima-se que metades das receitas dos governos locais são geradas das vendas dos terrenos pertencentes ao Estado.

Todos estão querendo aproveitar a onda para surfar ganhando alguns trocados a mais. As empresas, que viram os seus lucros desabarem com a queda das exportações, não conseguindo compensar o mercado externo com a expansão do consumo interno, passaram a desviar dinheiro para especulação imobiliária. A indústria de ferro, cimento móveis entre outras ligadas à construção civil, vêem na bolha que se expande a solução para os seus problemas. O PIB em 2009 teve um crescimento considerado espetacular, 8,7%, acima do esperado pelos analistas e pelo Governo. O mercado global de commodities, sujeito a toda forma de especulação reanima-se, e as bolsas passam a ser o investimento mais lucrativo apesar das dificuldades na produção, principalmente as ações das empresas exportadoras, mesmo aquelas em que as exportações não passam de uma possibilidade.

Mas, quando todos parecem felizes, excetuando os 2/3 de chineses pobres que não conseguem se beneficiar da bolha imobiliária, ouve-se o arquejante rugir de um assustador dragão colérico que parecia adormecido, e costuma dar muito trabalho aos governos no seu despertar. A inflação dos preços aos consumidores que vinha em queda saltou de 0,6 % para 1,9% em novembro. Nos meses seguintes, apesar de algumas variações para baixo, não deixou de subir se comparado com os meses anteriores a novembro. O impacto negativo nos baixos salários dos chineses pobres já se faz sentir, e veio se juntar a massa dos desempregados pela crise que foram obrigados a retorna ao campo para cultivar lavoura em solo infértil em franco processo de desertificação em vastas regiões. Esperava-se, em prazo não tão curto, com a imensa expansão monetária na China e no resto do mundo(1), o retorno da inflação que se acreditava moderada.

O Governo chinês encontra-se num impasse: ou à paulada faz dormir o maldoso dragão antes deste acordar por inteiro, esvaziando de forma “controlada” a bolha com juros altos e redirecionando a política fiscal reduzindo os incentivos, freando o consumo interno com repercussão nada interessante para o mercado global, ou deixa a bolha e o consumo se expandir, até o estouro final sem controle que pode agravar a crise e levar a China e o mundo a uma profunda depressão. Os arranjos keynesianos de “cavar e tapar buracos” para conter a crise, não se mostraram suficientemente forte para reverter o quadro econômico. Antes de completar a tão esperada obra, os monstruosos e insustentáveis déficits fiscais começam a assustar, a inflação dá os primeiros sinais que pode pipocar com força, principalmente nos países onde se mantém a esperança de um crescimento “sustentado”, e os governos são obrigados discutir a reversão das políticas anticrise sem que estas tenham atingido o fim almejado.

(1) Inflação ou deflação, para onde caminha a crise?

25.11.2010.

domingo, janeiro 17, 2010

Haiti, a nódoa escondida do capitalismo mundial

Rall


A miséria que assola o segundo País ao declarar-se independente nas Américas, para se mostrar em sua plenitude, foi necessário um desastre natural de proporções inéditas. Às portas da maior potência capitalista do mundo, estava ali, flutuando no Oceano Atlântico, desacoplado do mercado mundial e esquecido pelo capital por não ser rentável. O Haiti, refugo do capitalismo global, há muito já vinha se desagregando enquanto nação. Um Estado antes apropriado pela família Duvalier, que usava o exército e os terríveis Tontons Macoutes para as mais abjetas formas de violência e exploração da população, garantia certa coesão com o uso do terror, assassinando e amedrontando psicologicamente, pois se difundia junto à população supersticiosa que François Duvalier, o Papa Doc, além de suas tropas genocidas, tinha a seu dispor um exército de zumbis prontos para entrarem em ação em defesa do pai de todos.

Na periferia do mundo capitalista patriarcal, surgem aberrações toleradas pelos países do centro, apesar de aparentarem o contrário, por fazerem parte da ordem mundial necessária à acumulação. Por isso, toda espécie de ditadores, mesmos os mais sanguinários que tem em comum o gosto de serem tratados como pai de todos, foram pouco molestados na história recente. O reino de terror e obscurantismo em que mergulhou o Haiti por décadas, quando começou desmoronar a ordem imposta pela família Duvalier e seus aliados, foi substituído pelo terror das gangues rivais armadas, antes coesas em torno do chefe supremo, a maioria originada no aparelho estatal e nas forças militares em desagregação. Essa situação consolidou-se, quando após a queda de Baby Doc, o ditador filho, as facções começaram a competir mortamente pelo espólio com a mesma violência a que estavam habituadas tratar a população.

Foi necessário um arrasador terremoto para que se descobrisse que o Haiti é aqui. Que tamanha miséria não se encontra só no Continente Africano, igualmente esquecido por não ser rentável, mas também no coração das Américas, nos outros continentes e dentro de cada um dos países mesmo nos ditos desenvolvidos. O furacão que arrasou Nova Orleans expôs com crueza um Haiti escondido nos EUA. A crescente exclusão do mercado global de regiões, países e até mesmo continentes, faz parte da lógica do desenvolvimento capitalista na medida em que a competição pelo lucro faz crescer o capital constante, principalmente pelo o aumento das maquinarias e automações, e reduz propocionalmente o capital variável, ou seja, a força de trabalho que cria valor e mais-valia, pressionando para baixo a taxa de lucro. Por outro lado, em contradição com o crescente potencial das forças produtivas, o universo dos não rentáveis tende a se expandir junto com o consumo improdutivo, impactando ainda mais negativamente na taxa de lucro. Em última instância, o que conta para acumulação real do capital é o trabalho produtor de mais-valia e o consumo produtivo daí decorrente.

Mas quando praticamente inexiste trabalho produtivo, quando a mais-valia futura (uma miragem) não pode ser antecipada através do crédito, quando não é possível alimentar o consumo mesmo que improdutivo para o capital através das chamadas "políticas compensatórias" financiadas pelo Estado, no capitalismo, o resultado imediato é morte pela fome e pelas doenças da miséria. No Haiti, quase um décimo das crianças morrem antes de completar cinco anos. Outros tantos são assassinados fazendo com que a expectativa de vida não passe de 54 anos. O retrato do Haiti, como também dos bolsões de miséria dos países em desenvolvimento, cujos indicadores não são diferentes, tende a se espalhar como uma nódoa, inclusive para os países desenvolvidos, à medida que a crise do trabalho se agrava e a força de trabalho torna-se supérflua. Para libertarmo-nos dos fetiches que nos assombram, temos que aprender a pensar para além dos limites que nos é permitido pela sociedade produtora de mercadoria, afastando-nos dos administradores da crise.

17.01.2010