quarta-feira, novembro 07, 2012

O Mensalão, o Estado e as ilusões da esquerda


Rall

O chamado escândalo do mensalão, tido como o maior julgamento de um caso de corrupção no Estado Brasileiro é só uma pequena demonstração do que se passa nas entranhas do poder(1). Foi possível vir à tona, pela insatisfação de um dos líderes de um partido beneficiado, que impulsionado pela concorrência ferrenha por recursos e por poder que anima os partidos e seus membros, denuncia todo o esquema. Sabendo do risco de ser destruído com os adversários, por trás dos cálculos ao denunciar, considerava que os rumos poderia não ser do julgamento que ora se assiste, mas a possibilidade de se ampliar o poder do denunciante.

Como no mercado, na política não se tem controle sobre os fatos em movimento, e o resultado foi um inesperado julgamento com condenações que surpreendeu políticos e a própria sociedade acostumada assistir denuncias como essa resultarem em “pizza”, como ironicamente os descrentes na justiça referem-se aos conchavos que normalmente livram as elites das punições. Dessa vez, as poderosas tentativas de parar o processo foram bloqueadas pelas denúncias da imprensa e outras manifestações, inclusive de membros do próprio Superior Tribunal de Justiça.

Será que após o julgamento do mensalão, com as esperadas condenações, arrefece o ímpeto do “sujeito automático” em busca de fazer mais dinheiro?  Não importa onde este age se no mercado ou no Estado, a lógica que o move independente das vontades pessoais é a mesma: como Midas, de seu íntimo pulsa o desejo de tocar nas coisas esperando que tudo vire ouro. No entanto, as receitas na forma de impostos para o financiamento do Estado e seus negócios deveriam vir da mais-valia realizada no mercado. Com a crise do trabalho abstrato e a conseqüente paralisação da valorização do capital, que se manifesta na estagnação da economia, o mercado e o Estado para se financiarem, passam a depender da formação de capital fictício, gerado no crédito que se renova ao infinito e nas bolhas financeiras onde o dinheiro sem substância brota do nada em velocidade estonteante, como o ouro no mito de Midas.

Os agentes políticos, imersos nessa atmosfera onde o Estado funciona como um balcão de negócio que usa de todos os meios para favorecer os interesses privados, sentem-se atraídos pelo dinheiro farto e fácil emitido sem limites, que circula de um lado para outro(2). Ao fazerem suas escolhas em benefício próprio, ou em nome de “ideais abstratos”, sabem que podem responder por elas quando flagrados. Os casos que se seguiram ao mensalão mostram que o medo da punição não é alto. O Leviatã, com poder para “vigiar e punir”, usa a ordem jurídica regulando e coagindo na busca de manter certo equilíbrio entre os sujeitos concorrenciais, sem no entanto alcançá-lo, para que a sociedade burguesa não se destrua pela ação dos incontornáveis processos cegos que a anima em busca do lucro.

O Estado moderno que se consolidou na medida em que o capitalismo tornava-se hegemônico, sempre foi muito ativo no uso brutal da força, destruindo as formas pré-capitalistas e outros obstáculos à sua expansão, e na acumulação de “riqueza abstrata”, que na história moderna nunca foi atividade só do mercado. Ao mesmo tempo, ia assumindo gradativamente o papel de regular os excessos da concorrência. O que se observa agora é o esgotamento dessa função reguladora executada em nome da sociedade e um Estado mais parecido com o mercado ou subsumido a este. Todo tipo de transação passa então a ser possível: vai das transferências de dinheiro público para os cofres dos grupos privados a espetáculos como o mensalão. Sempre em nome do crescimento econômico ou para evitar a falência de setores eleitos para não quebrarem.

Se para o senso comum o que se caracteriza como corrupção é a utilização do dinheiro público como se fosse privado, ou para fins particulares, vamos encontrá-la generalizada e quase institucionalizada. Os preços acrescidos às licitações para suborno nos negócios estabelecidos entre o setor público e o privado, prática corrente aceita em todo mundo, a compra de crédito podre e o financiamentos a juros negativos às empresas pelos bancos centrais em operações globais, obedecem aos mesmos princípios, mesmo que seja visto de forma diferente pela sociedade.

Mas, a corrupção que se estabelece na relação entre o público e o privado, e que aparenta ser a parte perversa dessa relação, esconde a lógica do capital agravada pelo impacto da crise da valorização no coração do Estado. Quanto mais difícil o financiamento do Estado e de seus agentes pelo dinheiro resultante da mais-valia realizada no mercado, mais intenso esse processo. Quanto mais difícil for financiar o trabalho improdutivo com parte da mais-valia do trabalho produtivo no sentido capitalista, mais tendem a degenerar o papel do público como assim o entende o discurso que ver no Estado moderno funções emancipadoras. Mesmo que este, a olhos vistos, pareça-se cada vez mais com seu irmão siamês, o mercado, a cada espasmo da crise.


 07.11.2012

terça-feira, agosto 21, 2012

A indignação não é garantia de uma crítica radical


Rall

Escrever sobre a crise tem se tornado algo enfadonho e repetitivo. Mas, a revelação de alguns fatos, mesmo que não seja nenhuma novidade para forma como o capitalismo nos tempos atuais busca resistir ao ocaso, e as interpretações precipitadas desses fatos quando rapidamente descobre-se o “eixo do mal”, incita-nos a refletir mesmo consciente dos riscos do autoengano que pode nos levar um mundo incerto. Estou referindo-me como em geral se reagiu à manipulação da taxa Libor pelos grandes bancos, as notícias de lavagem de dinheiro inclusive do narcotráfico, e as afirmações de que a crise global se resume à bandalheira do sistema financeiro, sobre os quais não se tem mais controle.

É simplificar demais os fatos que brotam incessantemente de uma realidade complexa e instável, que resistem a intepretações precipitadas e a remendos superficiais costurados com muito dinheiro pelos governos e bancos centrais. Propala-se que o mal é a ganância sem limites dos bancos que sangra a economia real e o trabalho suado e honesto. Que o cassino financeiro onde se gera dinheiro e crédito do nada, entre outras coisas, vai nos levar ao desastre senão enfrentado com determinação pela mão pesada do Leviatã ou a mão invisível do mercado. Muitos analistas, à esquerda ou à direita, não acreditando que o Estado possa regular o funcionamento desses serviços, radicalizam suas posições e saem em defesa de se deixar os bancos à deriva, sujeitos as leis do mercado e a falência, mesmo que todos venham a quebrar numa reação em cadeia. No entanto, apesar das posições aparentemente pró-mercado, defendem que os governos deveriam dar garantias ao correntista e ao poupador.  

Os que só veem no crescimento descontrolado das finanças e seus efeitos colaterais destruidores o problema principal, não são capazes de entender que a exponencial expansão desse setor, surgiu como uma necessidade de suprir as deficiências de acumulação real da economia dos meados dos anos 70 para cá. Foi essa imensa máquina de geração de dinheiro sem substância (capital fictício), organizada em rede ao redor do mundo utilizando as novas tecnologias de informação, e suas imbricadas relações simbióticas com os Estados e empresas, que serviu e continua servindo como pulmão artificial que faz a economia moribunda respirar em bolhas efêmeras. Esse discurso simplificado de “são os bancos os culpados”, assumido por todos os matizes políticas e ideológicas, desvia o foco da questão central de que a crise financeira é a manifestação da impossibilidade do capitalismo resolver os limites de expansão da acumulação real através da criação de capital fictício.

As frequentes quebras das regras no jogo de “fazer dinheiro” extraindo-se mais-valia, que se acentuam agora em tempos difíceis, não é só privilégio de bancos e outros serviços financeiros, mas das indústrias quando vendem leite misturado a mijo de vaca(1) e outros venenos para turbinar os lucros, dos Estados que imprimem dinheiro para salvar esses mesmos bancos e indústria em dificuldades, ou seja, do capital como um todo.  O que se observa é um esgarçamento do tecido social em todos os níveis da sociedade, num salve-se quem poder, onde tudo é permissível para garantir o dinheiro no bolso ou nos bancos, mesmo que falso. Isso não deixa de ser um sintoma de uma profunda crise onde tudo relacionado com o valor e com o patriarcalismo apodrece e degenera em corrupção generalizada que age sem limites, contaminando corpos e almas em busca da salvação, por mais puros que se vejam.  

A visão maniqueísta, que busca os males do mundo num setor isolado mais exposto pela forma como a crise terminal do capitalismo se apresenta, sabota a discussão. Não estamos falando de saídas para crise que se espera serem apontadas por um movimento social vigoroso, que se ainda não despontou dá sinais que pode emergir, mas da crítica radical da sociedade da mercadoria e do esclarecimento das situações diversas que brotam dessa totalidade complexa que ameaça desmoronar sobre nossas cabeças. A crítica não pode se deixar contaminar e se curvar aos apelos às fáceis soluções, mesmo quando a indignação é universal.


21.08.2012

quarta-feira, agosto 01, 2012

Robert Kurz

Rall

As minhas primeiras leituras dos textos de Robert Kurz eram instigantes e intrigantes. Instigante, porque em seus escritos ia buscar em Marx coisas que a esquerda tradicional nunca viu ou não queria ver, ou se viu desfez-se ràpidamente como brasas que queimam as mãos. Intrigante, pois deixava-nos perplexos ao levantar questões que desmoronavam, em milessímo de segundos, nossas certezas construídas durante anos de militância. Como um potente raio cósmico, fulminava nossas pretensões de achar que conheciamos a verdade, mas enchia os caminhos com uma luz brilhante que iluminava e osfuscava ao mesmo tempo. Levantava questões novas para a Teoria Crítica que nos fazia entender melhor um mundo instável, mas deixava um rastro de incertezas que aumentava a angústia. Era polêmico e corajoso no enfrentamento do pensamento congelado por um mundo "naturalizado". Seu legado precisa ser gotejado, recuperado, reelaborado e publicado por aqueles que deverão continuar na revista Exit. A melhor homenagem que poderíamos prestar a Robert Kurz é mantê-lo  fustigando este mundo de mortos-vivos.

 

01.08.2012


 

domingo, julho 08, 2012

Uma crise não explicada pelos manuais acadêmicos

Rall

Para os acadêmicos e jornalistas econômicos, essa crise apresenta um estranho comportamento: não se encaixa em suas análises conflitantes e em seus modelos, às vezes estapafúrdios, nos quais presumem “enclausurar” a realidade social. No início, manifestou-se como uma crise de liquidez, o dinheiro não fluía e o crédito de curto e longo prazo parou. Os bancos centrais imediatamente intervieram baixando os juros ao extremo e inundando o mercado com trilhões de dólares, euros e outras moedas de importância local. Os Estados, para salvarem os bancos, financiaram as dívidas utilizando mecanismos diversos, assumindo inclusive o risco de créditos podres, como a compra de bônus lastreados em financiamentos residenciais duvidosos, e estatizando instituições financeiras em dificuldade.
Isso não impediu que a economia continuasse em violenta contração, com crescente desemprego e os sujeitos endividados em dificuldades de saldarem os compromissos assumidos. Enquanto os governos concentravam esforços para salvar bancos e empresas em falência, o preço das casas nos EUA e Europa despencavam e o consumo de bens e serviços retraia-se. As empresas, que rapidamente demitiram já nos primeiros sinais da crise, principalmente nos EUA, equilibraram seus orçamentos e aumentaram a produtividade à custa de uma carga de trabalho maior dos funcionários que permaneceram empregados. Com essas medidas e com dinheiro farto a custo zero para renegociar suas dívidas, saíram do vermelho e passaram a superavitárias. Enquanto isso, o dólar em queda pelas grandes emissões favorecia as exportações americanas e expandia a manufatura e o turismo.
De modo geral foi o que assistimos nos primeiros anos da crise financeira. Os pequenos progressos da economia aparentava uma retomada para os sempre otimistas analistas do “pior já passou”. Mas, independente das vontades, num segundo momento a crise ganhou novo e perigoso formato. O mercado, que antes sofria com a falta de liquidez, não sabe o quer fazer com o dinheiro disponível, e o crédito não decola. Os bancos privados recebem dinheiro dos bancos centrais para rolarem as dívidas mal paradas e deixam parte significativa entesourado nesses mesmos bancos centrais como reserva rendendo juros, mas também por cautela e falta de clientela. Os Estados, ao assumirem as dívidas do mercado colapsado, aumentam rapidamente seus déficits e caminham à galope para insolvência de proporções inédita, esvaziando a já limitada capacidade de intervenção(1).
No entanto, as diferenças entre os EUA e a Europa na forma de administrarem a crise parecem significativas quando superficialmente observada. Enquanto as autoridades monetárias americanas não se acanham em criar dinheiro novo sem substância para “salvar” seus bancos e empresas, através das chamadas rodadas de Q.E (Quantitative Easing), os europeus, apesar de utilizarem os mesmos expedientes, exigem de seus pares, principalmente na zona do euro, “moralidade financeira” (o que é isso no capitalismo?) e redução do déficit orçamentário. Aos gastadores, o sacrifício, brada a Alemanha. Posição antes apoiada sem restrição pelo governo francês, muda um pouco com a vitória dos socialistas. As diferenças nos discursos, num e noutro Continente, refletem a percepção que se tem da situação dos países com diferentes comprometimentos da dívida soberana em relação ao PIB.
O estranhamento está mais relacionado com o comportamento da economia americana, e menos com a europeia onde a crise da dívida dos estados afeta todos os setores da sociedade, público e privado, e o afrouxamento monetário é mais controlado. Se nos EUA a crise da dívida soberana não atingiu ainda as proporções assistida nos países europeus e a liquidez daria para inundar todos os poros da sociedade, como explicar que empresas com dinheiro em caixa não invistam e os americanos não consumam como deveriam já que o Governo subsidia as compras via juros negativos? A contínua queda nos preços das residências e o persistente desemprego parecem ser dois indicadores importantes de que a política de “jogar dinheiro de helicóptero” não está funcionando como esperado. A nova tempestade de dinheiro que vem sendo preparado pelo Fed para irrigar o mercado, deve não fazer nenhum efeito, pois a terra já está encharcada. Mas, dependendo do volume, as barreiras de contenção da inflação pode não suportar a força da colossal correnteza, apesar da tendência atual à deflação(2).
Se, por um lado, os endividados consumidores resistem em não consumir mesmo com o dinheiro barato oferecido pelos bancos, e se a criação de novas vagas no mercado de trabalho mostra-se insuficiente para aquecer o consumo, a tendência das empresas, ao não enxergar a possibilidade de rentabilidade na economia real, é não investir na produção, mesmo que lhes sobre dinheiro nas burras. O dinheiro tende a fluir para papéis do governo ou para investimentos especulativos que não criam valor. Essa é uma das formas de geração de bolhas financeiras: o fluxo de dinheiro se desloca para espaços públicos ou privados, que ofereçam remuneração fictícia, ao fugir dos investimentos na economia real que não dão retorno, até ser novamente pulverizado num processo autodestrutivo de desvalorização.

08.07.2012

sábado, maio 05, 2012

O Brasil, os BRICs e o Mundo

Prisioneiros do espírito da época, incerto,
Não busque saída fácil da opressiva prisão,
O salto é grade, transcende as revoluções.
Que quebrem grilhões em pontos infectos!
(Autor desconhecido)

Rall

Os sinais de ruína da economia mundial continuam vindos de todos os cantos. Na Europa, um grande número de países entrou em recessão enquanto agrava-se o desemprego, a crise da divida soberana e o déficit fiscal mantem-se alto. Na Espanha, o desemprego beira os 25% da população economicamente ativa; mais de 50% dos jovens estão sem trabalho, outro tanto vivendo de bico ou retornando para casa dos pais. A situação da Inglaterra não é nada fácil; quando comparado os números pode-se afirmar que a situação é pior do que em 1929 (1) . A chamada recuperação da América do Norte começa mostrar sinais de fraqueza com o  PIB e a geração de empregos revistos para baixo; o setor imobiliário, tão importante na dinâmica da economia ianque, não consegue encontrar o fundo do poço. E a China, a "fábrica do mundo", o mais renomado membro do BRICs, desacelera pressionada por problemas quase insolúvel em sua economia.

Seria enfadonho citar as dificuldades pelas quais passam outros países, principalmente da Zona do Euro e do Leste Europeu. Apesar do intrincado da economia mundial, e de ser impossível analisar esta ou aquela situação descolada do todo, no Brasil, o otimismo dos analistas e governantes estar em alta. Esse otimismo se justifica frente à situação mundial? O Brasil, como seus pares do BRICs, serão capazes de driblar a crise e ainda darem um empurrãozinho no crescimento mundial, como muitos vaticinam? Qual a natureza dessa crise, cujas dimensões ainda não se têm clareza?  Entre tantas, essas são perguntas que devem ser perseguidas para não se aderir a respostas simplificadas que se fundamentam nas premissas austeridade versos estímulos para sair da crise.

Alguns elementos indicam que a acumulação capitalista como a conhecemos pode ter chegado ao seu limite, apesar de que a história mostra que um modo de produção pode levar séculos em crise, afundando-se na barbárie, antes de dar lugar a outro depois de muita luta e sofrimentos. Mas, a intensidade com que o capital fictício substitui a acumulação real, indica que esse tempo para o capitalismo pode já não mais ser tão longo. A velocidade com que o avanço tecnológico expulsa o trabalho da produção, movido pela concorrência que não permite outro caminho para os “vencedores” que não seja o aumento da produtividade, garantindo as empresas de ponta uma rápida sobrevida antes da obsolescência (“ao vencedor, as batatas”, já dizia o Mestre Machado), mostra que capitalismo “serra o galho em que estar sentado".

Com raras exceções, as empresas brasileiras, como também as dos outros países que formam o BRICs, estarão sempre atrasadas em relação às dos países ricos que detém o monopólio da tecnologia. Há concessões, mas daquilo que já não interessa mais como as indústrias que processam produtos ainda não acabados ou de baixo valor agregado, geralmente poluidoras e de uso intensivo de mão-de-obra, e as montadoras em geral, como forma de reduzir os custos do produto final das linhas mundiais de produção. Muito desses produtos semi-processados, entram como insumos no processo produtivo dos países ricos e, em sua forma final, são consumidos nesses mercados ou voltam aos países de origem. A maior fatia da mais-valia total, gerada nessa extensa e complexa rede de produção, fica com os países do centro, detentores de conhecimento e tecnologia de ponta.

Se fizéssemos um recorte para melhor entendimento, podemos afirmar que a cadeia de suprimentos da produção capitalista, pode ter início na matéria- prima explorada e exportada pelo Brasil para China (ou outros países, claro), que ao sofrer transformações pode ser exportada como produto semi-acabado ou final para os EUA, e aí consumido ou novamente transformado pela indústria em mercadoria que pode ser vendida no mercado interno ou externo. Outra possibilidade: as matérias-primas e os insumos de alta tecnologia importados, podem ser transformados em produto final nas fábricas chinesas e exportados para o resto do mundo ou consumido no mercado interno. Essa é a lógica de funcionamento do grande circuito deficitário entre os EUA e China, que alimentou as bolhas financeiras e ajudou a manter o crescimento econômico global até 2008.

Aí entre componentes importantes de conhecimento e tecnologia, supridos pelas empresas dos países do centro do capitalismo, que se beneficiam do baixo custo da força de trabalho ofertada pelos países periféricos para produzir mercadorias. Um exemplo clássico é da Apple, cuja montagem de seus produtos eletrônicos de alta tecnologia, é totalmente terceirizada para China e outros países que oferecem mão-de-obra qualificada e barata, o que a transforma numa empresa lucrativa e competitiva no mercado global, à custa de uma brutal exploração. Se olharmos com cuidado os espelhados produtos da Apple, podemos enxergar muita coisa, inclusive o bagaço de corpos donde são extraídos os últimos quantum de energia capazes de se converterem em mais-valia absoluta. 

Em países como o Brasil, a dificuldade de competir com os produtos vindos de fora, não estar relacionada só com um câmbio desequilibrado pela sobrevalorização da moeda local sob o efeito da especulação financeira global. A baixa produtividade do trabalho, a infraestrutura precária e a posição ocupada na produção mundial de mercadorias enquanto País em desenvolvimento é mais importante que o câmbio, pois é daí que se estabelecem as desvantagens cambiais. A desigualdade intrínseca ao desenvolvimento do capitalismo e as posições determinadas por quem detém maior desenvolvimento tecnológico e a força das armas, não se resolve com discursos animados.

Apesar da assimetria no desenvolvimento capitalista, a tendência das empresas em todo mundo, movidas pela concorrência, é inovar tecnológica e gerencialmente em busca de maior produtividade e competitividade. Em suma, a tendência global é a expulsão e redução da incorporação da força de trabalho à produção. Como a formação de capital só pode realizar-se com o consumo de trabalho produtivo na produção de bens e serviços, capaz de gerar mais-valia, ou seja, lucro, e como a tendência é a redução dessa forma de trabalho e a expansão do trabalho improdutivo, no sentido de que se consome, mas e não se gera mais-valia, surge aí um déficit na acumulação real que se busca cobrir com a formação de capital fictício, que se evapora na mesma velocidade com que se forma. São as crises financeiras.

A chamada crise da dívida do Brasil, Argentina e México nos anos 80/90, para citar as mais evidentes na América Latina e de memória recente nos países ocidentais em desenvolvimento, ecoou em todo mundo. Há muito mais motivos para acreditarmos agora, em repercussões maiores dos efeitos da crise que assola as nações ricas nos países periférico, como sempre aconteceu, mesmo porque se vive uma crise global do capitalismo. É uma grande ilusão imaginar os BRICs navegando contra a maré e agindo como salva-vidas dos náufragos, pois seus frágeis barcos estão inexoravelmente amarrados ao destino da grande embarcação dos continentes capitalistas avançados, que afundam em lenta agonia com o peso da crise de valorização do valor.
 
05.05.2012

domingo, abril 08, 2012

Uma Páscoa de ovos gorados

Rall

As notícias de mar revolto na velha Europa azedaram as bolsas as vésperas da Páscoa.  Agora vem da Península Ibéria, com o mercado exigindo juros mais altos para financiar a dívida espanhola. Já não é a pequena Grécia em ruínas que assusta, mas a colossal Espanha que dança o flamenco ao som das castanholas tocadas pelo BCE, FMI e pelos interesses do sistema financeiro. Os juros para o financiamento da dívida soberana  voltaram a subir e poucos acreditam que não só a Espanha, mas também Portugal e Itália, sem deixar de lembrar países do leste europeu, honrem os compromissos acordados com os credores.

Parte dos bilhões de euros entregues aos bancos pelo Banco Central Europeu (BCE) vem sendo usado para ajustar seus balanços. Outra parte fica entesourada no BCE rendendo juros. O restante que escapa para o mercado ruma para especulação nas bolsas, commodities, e, principalmente, para as operações de "carry trade" com preferência pelos países com juros alto como Brasil, Hungria, África do Sul, Nova Zelândia e Austrália, forçando a valorização das moedas e câmbio. O capital disponibilizado, mesmo que fictício, não flui para produção e consumo como o esperado. A prova disso é que apesar dos “afrouxamentos quantitativos”, a retração da economia, e, paralelamente, todas as formas de especulação, continuam em evidência no horizonte das análises mais consistentes, mesmo quando se pensa em prazos longos.

Por outro lado, as pressões pelo arrocho salarial, pela desregulamentação do mercado de trabalho em nome da ampliação do número de vagas e pelos cortes nos setores sociais são imensas. O suicídio de uma aposentada em Atenas, como manifestação de seu inconformismo pelas privações e pela indignidade a que estava submetida com os cortes nas aposentadorias, aponta para onde caminha as políticas dos países europeus na administração repressiva da crise para salvar o capital. Nesse jogo perverso, pouco importa as necessidades das pessoas, mesmo que venham morrer de fome. Com as ameaças de agravamento da crise, o emprego patinando, e os sindicatos na defensiva, essas pressões tendem aumentar e resultar em “soluções negociadas” com prejuízos para os mais fracos e para os jovens como já vem acontecendo.

A crise financeira, que tinha antes como nó a secura do mercado por capital, corre o risco de se agravar afogando-se num excesso de liquidez. O dinheiro liberado, mas ainda contido por diversos mecanismos, pode chegar ao mercado na forma de avalanche e sufocar a sociedade com ondas de inflação, mesmo sendo a deflação nesse momento a preocupação dos governos e de seus bancos centrais. Se produção do setor privado não se auto-sustentar como tudo indica, e as bolhas atingirem o limite de expansão que as levam a colapsar, com o grande volume de capital fictício circulando podemos ter o acirramento da crise em novo formato, onde a inflação haverá de ser considerada nos cálculos dos analistas e dos governos.

08.04.12

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Enquanto o novo não se manifesta

Rall

O crescente endividamento das empresas além de suas possibilidades, surge no pós-guerra como uma necessidade de suprir as demandas de capital fixo e de compensar a fraca acumulação na economia real. Nos anos 80 esse processo se intensifica com as mudanças na produção que incorpora novas tecnologias e aumentam a produtividade do trabalho. Começa aí a formação das grandes bolhas financeiras que funcionam, enquanto inflam, como alavancas da economia real. As medidas regulatórias com a pretensão de corrigir os 'excessos' na geração de crédito e a formação de bolhas, se efetivadas devem trazer à luz a incapacidade da economia real sustentar-se sem a formação de grande quantidade de capital fictício. Pois, em última instância, o motivo da crise financeira, o grande volume de capital fictício circulante, é também o eixo principal da engrenagem que movimenta a economia. O crédito sem limites, um dos principais meios de geração desse capital, não pode ser controlado sem que a economia real, nele ancorada, não corra um grande risco de colapsar.

Com o advento da crise financeira em 2008, onde trilhões e trilhões de dólares foram queimados, secando o mercado e retraindo o consumo, as empresas, para não falirem, ajustaram-se a nova realidade fechando um sem números postos de trabalho e recorrendo ao financiamento do Estado para o contínuo movimento de rolagem das dívidas. Prontamente os Estados atenderam, imprimindo volume inédito de dinheiro através de seus bancos centrais, e passaram a suprir as demandas do mercado com grande volume de capital sem substância a custo zero. Esse dinheiro, contabilizado como crédito a ser saldado pelos tomadores num futuro sem prazo quando tudo estiver consertado, inclusive o retorno da rentabilidade, aparece como dívida nos orçamentos dos Estados. No entanto, apesar da liquidez forçada, os investimentos privados não acontecem como esperado e parte do dinheiro retorna aos bancos centrais(1) ou é direcionado à especulação financeira.

Para os EUA, detentor da moeda universal, imprimir dinheiro significa endividar-se, mas também desvalorizar o dólar e tornar-se globalmente mais competitivo com a desvalorização do câmbio em relação aos demais países. Nos primeiros momentos da crise, onde todos se sentiam ameaçados, alguns acertos globais foram possíveis. Porém, com o acirramento mortal da concorrência por mercados consumidores saturados, instalou-se o dissenso: cada um busca a seu modo, transferir para o vizinho o ônus da crise. A política de expansão monetária dos EUA transformou-se em arma poderosa no enfrentamento dos concorrentes, fazendo com que as exportações de seus produtos industrializados de alto valor agregado batam os similares produzidos fora. Porém, isso não se aplica aos produtos manufaturados na China e outros países, que mantém a moeda atrelada ao dólar e os salários bem inferiores aos pagos aos trabalhadores norte-americanos, compensando a diferença de produtividade. 


Como achatar os salários abaixo do esperado para o nível de consumo de uma determinada sociedade não é tão fácil, mesmo considerando-se o grande número de trabalhadores desempregados, há um consenso nos países ricos de que a saída para as suas empresas voltarem a ser competitivas no mercado global é aumentar a produtividade. O setor privado dos EUA, pelas declarações de seus executivos, vem trilhando esse caminho com ajuda do Governo, e deve ser acometido de um novo surto de produtividade renovando o parque industrial, sem necessariamente produzir uma nova revolução tecnológica. Isso já vem acontecendo na esteira da Terceira Revolução Industrial, cujo potencial está longe de se esgotar.

O aumento da produtividade, se por um lado beneficia provisoriamente empresas e nações, corrói o valor que no mercado se manifesta como uma redução de preços. Esse fenômeno evidencia-se nos preços dos chamados bens duráveis, que vem caindo de forma acelerada em todo mundo. Pode-se argumentar que a acirrada concorrência tem jogado os preços para baixo, o que não deixa de ser verdade. Porém, uma mercadoria só pode forçar a queda de preço de sua concorrente e reduzir a margem de lucro, se for produzida em condições de oferecer-se ao mercado a preços competitivos, mantendo uma margem que compense sua produção, mesmo que dure pouco. Embora possamos falar em ganhadores e perdedores quando se trata de empresas ou países isolados, o que se observa globalmente é uma inexorável crise da "valorização do valor (Marx)" com o aumento da produtividade e queda do trabalho produtivo.

Nada disso era muito claro antes da revolução tecnológica que incorporou à produção a microeletrônica, possibilitando a automação em larga escala e a dispensação do trabalho produtivo gerador de mais-valia. Apesar de ser essa uma tendência inerente à lógica do capitalismo, analisada por Marx nos seus primórdios, só se evidencia, mesmo para os crédulos, a partir da Terceira Revolução Industrial. A crise dos gigantes japoneses como a Sony, Panasonic e Sharp com um prejuízo combinado de 17 bilhões de dólares em 2011, e a quase falência da indústria automobilística dos EUA e de outros grandes conglomerados empresariais do globo, não está fora desse contexto. O abalo financeiro global, com o recuo do crédito e a queima de parte do dinheiro fictício gerado no mercado de papéis, que ‘artificialmente’ dá sustentação ao consumo e a produção industrial, é um agravante desse quadro.

Determinante da crise é, porém, a queda livre da rentabilidade dos setores produtivos geradores de mais-valia, que exigem a partir daí a expansão do capital fictício para se sustentarem. O estouro das bolhas infladas com esse capital e a crise das dívidas soberanas mostraram os pés de barro do capital sem substância e, ao mesmo tempo, a incapacidade da denominada economia real movimentar-se sem ele, mesmo que mais na frente tenha que prestar contas com alto custo social. O grande dilema é que enquanto se estreita o campo de manobra da economia política, e os danos sociais a cada espasmo da crise tornam-se mais frequentes e severos, o novo, capaz de navegar na escuridão do capitalismo em crise, não foi captado em sua totalidade e consistentemente formulado.


16.2.2012