sexta-feira, março 07, 2014

Os limites da resistência à crise na Ucrânia

Rall

A crise do capitalismo atinge inexoravelmente os países em desenvolvimento e manifesta-se das mais variadas formas. Ucrânia, Venezuela, Egito, Síria, Filipinas, Turquia só para citar os mais recentemente acossados por manifestações e guerras com bandeiras diversas, apontam para Continentes inteiros em desespero. Porém, as massas saem às ruas e mantém as lutas nos limites de sempre. Não são capazes, por mais justas que sejam as reivindicações, de romper o círculo vicioso de derrubar governos e eleger outros que repetem as políticas econômicas e sociais dos antecessores e geralmente agem com mais severidade na administração autoritária da crise. Apesar dos sacrifícios, que às vezes desemboca em guerras civis sangrentas, a irrupção dos movimentos sociais não consegue frear o aprofundamento da barbárie da forma como vem se dando os enfrentamentos. Podemos dizer que as mudanças no poder terminam se voltando contra os desejos das ruas, cujas reivindicações não ultrapassam os limites do imediato(1).

Portanto, vivemos um estranho momento de lutas intensas, com os aparentes avanços sempre retornando ao ponto de partida ou recuando aquém desse. Os movimentos sociais não conseguirão se libertar da armadilha política que domina o cenário da crise do capitalismo global, se mantém como objetivo das lutas a distribuição da cada vez mais escassa “riqueza abstrata”. Nos países onde governos foram derrubados, assistimos com raras exceções, os “movimentos” degenerarem em grupos em conflito, muitas vezes armados, que competem pelo espólio do que resta desta riqueza. E não se vislumbra nada diferente mesmo onde são considerados consequentes por todos os credos.

Parece que quanto mais o capitalismo expõe seus limites, o desespero no enfrentamento das ruínas reforça a lógica deste por outros meios. É o que de fato temos assistido quando os movimentos, despontando mundo a fora, abalam o poder e até mudam seus atores para que tudo continue como estar. Esse quadro se complica mais ainda com a ingerência direta ou indireta das potências militares que, aproveitando-se do caos, buscam interferir para manter sua influência ou garantir os negócios econômicos. A Ucrânia pode ser rasgada ao meio, formal ou informalmente, para assim acomodar interesses do capitalismo mundial e receber o dinheiro que precisa para evitar a falência. A Europa, que depende do gás da Rússia e do Território ucraniano para o seu transporte, vai exigir de Kiev uma acomodação com seu vizinho e fechará os olhos a ocupação Criméia pelos russos. O resto é encenação.

É possível que a resistência ucraniana, como muitas outras, sinta traída sua “revolução”. Mas que revolução? A troca de gestores da crise simpáticos aos russos por outros aparentemente simpáticos à União Europeia que oferece bilhões de euros em troca de sacrifícios da população? Se o resultado for esse não se pode falar em revolução. Enquanto os movimentos sociais não enxergarem que a crise do capitalismo, que se manifesta de forma assimétrica, porém permanente é uma crise de suas categorias fundamentais, e que uma verdadeira revolução haverá de exigir uma crítica radical a essas categorias (trabalho abstrato, mercadoria, valor, dinheiro, mercado, Estado, patriarcalismo), nada mudará. Isso exige dos movimentos organizados a produção de uma consciência crítica e certa autonomia em relação às instituições burguesas, principalmente aos partidos políticos. No entanto, o que se observa é a captura desses movimentos pelos partidos da ordem e poucos resistem aos acenos do poder estatal, mesmo que lá nada consigam fazer.

Nesse momento da história do capitalismo, a contradição entre “riqueza abstrata” (dinheiro) e riqueza material e imaterial (coisa úteis) chegou ao limite máximo. Para compensar a crise do trabalho abstrato, do valor, o capitalismo global é obrigado inundar o mundo com mercadorias que logo são descartadas. Muitas delas de pouca ou nenhuma utilidade, rapidamente transformam-se em lixo com os resultados desastrosos para o Planeta Terra, levando a crise ecológica com repercussões gravíssimas no mar, no ar, na terra e no clima, e os riscos a todas as formas de vida. A concorrência, que se intensifica ferozmente com a trajetória da crise do valor, condiciona o aumento da produtividade e a apropriação da maior fatia da mais-valia social pelas grandes corporações detentoras de alta tecnologia. A estruturação das “cadeias de valor globais”, aonde os grandes monopólios ocupam posição privilegiada, além do desemprego pela crescente automação da produção resultante da introdução de novas tecnologias, força o aumento da produtividade do trabalho à exaustão e o desemprego nas pequenas e médias empresas, pela “apropriação predatória da mais-valia em cima das firmas mais frágeis” (François Chesnais) que funcionam como fornecedoras das grandes corporações, agravando ainda mais a crise do valor.

Para o sistema não entrar em colapso com a paralisação definitiva do processo de valorização, o dinheiro passa a gerar mais dinheiro fora das cadeias produtivas e sem a mediação da mercadoria força-de-trabalho: A fórmula D-M-D’, onde a mercadoria força-de-trabalho produz o Δd, ou seja, a mais-valia, e deveria encerrar toda essência do capitalismo, passa a fórmula vazia D-D’, expressão da sociedade burguesa em nossos tempos. O capital fictício assim formado (D-D’) movimenta-se sem controle nos mercados à velocidade da luz para especular e crescer, mas também para esconder sua face ilusória e não ser descartado nos momentos de agudização da crise. Entra e saí da economia real aonde se recicla ao movimentá-la, ou a deixa a míngua quando se vê ameaçado, como hoje assistimos em vários países, com destaque para Ucrânia, Venezuela, Turquia e Argentina.

A busca da superação da crise, que é também a busca pela emancipação entendida como superação da sociedade fetichista, exige que a resistência à crise organize-se e direcione sua energia no sentido de ultrapassar os limites dos cenários impostos pelo capitalismo e pelas instituições que lhes dão sustentação, inclusive ultrapassar as fronteiras nacionais como já o fez há muito o capital.

(1)Olhando para os eventos no Egito em busca de reflexões

07.03.2014