segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Caminhos da crise

Rall

Quando o capitalismo entrou em crise nos anos 70, as reformas que se seguiram tinham como um dos focos levar ao limite a exploração da força de trabalho. Um dos eixos dessa reforma foi à intensificação da terceirização e flexibilização das relações de trabalho, que resultou na precarização e aumento da rotatividade como forma de rebaixar os salários. Apesar da melhoria da rentabilidade de alguns setores empresarias, a terceirização não conseguiu impedir a queda da massa total de mais-valia. A partir daí, a velocidade com que as tecnologias inovadoras tornavam não-rentável contingentes de força de trabalho, não era compensada pela novas formas de gestão e extração e mais-valia ancoradas na terceirização, mesmo levando ao extremo a intensificação e exploração do trabalho.

O trabalho improdutivo não gerador de mais-valia, relacionado com as atividades administrativas e burocráticas das empresas, ao ser terceirizado e transformado em trabalho produtivo de capital por passar a produzir mais-valia, não pode compensar a expulsão do trabalho produtivo pela introdução de novas tecnologias nas linhas de produção, forçada pela concorrência empresarial e entre nações. Isso fez com que a rentabilidade continuasse em queda quando vista no conjunto em uma série histórica, e que o capital fictício fosse crescentemente mobilizado com a criação das chamadas inovações da indústria financeira, como os derivativos, e pela injeção de uma grande quantidade de capital monetário na economia, onde se destaca o uso desse capital na aquisição, modernização e vendas de empresas, num processo especulativo que faz crescer o estoque de capital fictício. Ao mesmo tempo amplia-se o consumo pela expansão do crédito, mantendo com isso uma aparente normalidade da acumulação.

Manifestações esparsas da crise se fez presente em todo mundo, principalmente na América Latina nos anos 80 que ficou conhecida como crise da dívida, na Ásia com destaque para o Japão nos anos 90 cujo longo período de deflação se mantém como uma ameaça constante, até o estouro das bolhas do ponto.com em 2000 e do crédito imobiliário em 2007/2008, da qual os centros imediatamente atingidos foram os EUA e Europa.

Mas, contrariamente as crises do passado quando o capital fictício era expurgado e a acumulação retomava em outros patamares, nos momentos da crise que teve início nos anos 70 do século do Século XX, o capital fictício não só se manteve em movimento e movimentando a economia em todas as suas dimensões, como, com ajuda do Estado e de seus bancos centrais, vem se expandido a perder de vista na tentativa de compensar a incapacidade de valorização na chamada economia real. Quando os bancos centrais americano, japonês e agora o europeu põe em prática o afrouxamento quantitativo nada mais fazem do que imprimir dinheiro para comprar títulos podres, ou seja, buscam com isso valorizar artificialmente papéis sem valor no mercado. O termo afrouxamento monetário quantitativo não passa de um eufemismo para esconder o verdadeiro sentido do que vem fazendo os bancos centrais: impressão de dinheiro fictício. Buscam apagar o fogo da crise financeira com o combustível que lhe deu origem.

No entanto, nuvens carregadas de capital fictício começam a se acumular no horizonte numa velocidade inesperada além da competência do Estado e do mercado administrar os excessos, e logo farão desabar raios de destruição sobre a economia mundial. Outra crise financeira na situação atual da economia com problemas em todo globo, temperada pela violência e instabilidade política geral, pode levar a uma grave depressão com conseqüências imprevisíveis.

A outra estratégia para sair da crise foi o deslocamento da produção para os países periféricos, onde se pagava salários de até um vigésimo dos países do centro, que tinha como objetivo suprir com produtos baratos os mercados dos países desenvolvidos. A partir dos anos 80 formou-se um enorme circuito deficitário entre a Ásia e os países centrais, tendo a China no transcorrer dos anos se consolidado como o principal País exportador. Os dois grandes países em polos opostos desse circuito, a China detentora do maior superávit da história das relações comerciais e os EUA do maior déficit, tem as economias tão interligadas, que a crise financeira de 2007/2008, ao paralisar a economia americana, abalou profundamente os alicerces da economia chinesa. A China que foi obrigada então redirecionar suas atividades econômicas para o mercado interno sem está preparada para isso, não "cavando buracos" como propunha Keynes, mas construindo cidades fantasmas e trens-balas que se deslocam pra lugar nenhum.

Esse gigantesco volume de capital "congelado" na infraestrutura, mas principalmente em prédios vazios, tende a se desvalorizar rapidamente e jogar a China em recessão com deflação, agora sem poder ser socorrida pelo mercado externo para escoar a produção de suas mercadorias e fazer dinheiro. Portanto, esgotada as possibilidades dos investimentos internos, que na verdade foi uma forma de queima de capital pela crise sem que seus governantes tivessem clara consciência, a China se depara com uma montanha de dívidas podres prestes a se desvalorizarem, que deve afundar seu mercado financeiro já frágil e abalado pelo espectro do mercado paralelo que cresceu rapidamente em cima das empresas e dos governos das províncias que, em dificuldades, buscam liberação fácil de empréstimos a juros exorbitantes. Produção industrial e de construção em crise, e mercado financeiro com as bolhas de crédito preste a explodir, deve ser uma grande dor de cabeça para a burocracia chinesa e para os dirigentes dos países a ela associados nas relações comerciais.  

Com o fim do circuito deficitário que alimentava o crescimento do capitalismo chinês, à medida que os governos provinciais e as empresas passaram a ter dificuldades, recorreram cada vez mais ao dinheiro fácil de pegar e difícil de pagar do mercado financeiro paralelo. O crescimento desse mercado, livre de controles e desregulamentado, mas consentido, é um grave sinal da saúde e de como anda o endividamento das empresas chinesas e seus sócios, os governos das províncias que são parte importante dessa economia onde mercado e Estado costumam dançar em harmonia um mesmo tango.

À medida que o colapso da economia chinesa já não é mais uma miragem, surgiram dois importantes desdobramento: um prático, que vem puxando para o precipício os países exportadores de commodities de baixo valor agregado, como o Brasil e outros que dependem desse mercado. A situação da China tende ainda agravar a recessão na Europa e abalar o crescimento dos EUA por interrupção de negócios e interligação dessas economias. Outro de ordem teórica: se 2008 foi à vez dos intervencionistas com dedo em riste ameaçarem jogar no lixo da história a produção dos teóricos do mercado, agora é a vez dos estatistas prestarem contas aos seus adversários, pela incapacidade dos estados responderem as questões postas pela crise.

Ao tratarem mercado e Estado como entes de mundos diferentes, e não como categorias do capital, os adversários equivocam-se em suas análises. A crise do capitalismo é categorial. Portanto, a solução para crise não está no Estado e no mercado, pois enquanto categorias da forma de produção capitalista são parte dela.

No Brasil estamos a assistir um enorme fuzuê num mesmo governo que de uma política reclamada como intervencionista sem os resultados esperados, dá uma guinada e cai nos braços dos antes inimigos homens do mercado, apesar das juras contrárias de campanha. Isso me lembra dum amigo de juventude ao justificar, apertado por outros jogadores, dois gols contra em uma pelada de várzea: agora eu sou a favor do contra, pronto. A perda de norte do governo brasileiro mostra as dificuldades de se lidar com uma crise que foge ao controle das soluções acadêmicas de todas as escolas. Portanto, se uma não deu certo, testa-se a outra que provavelmente não desvendará o enigma.   

Quanto à expansão do comércio exterior nos últimos 30 anos, tido como um indicador importante da economia mundial, utilizado como argumento de que apesar de tudo o capitalismo segue muito bem, é necessário considerar que a integração da produção a nível global e o constante deslocamento de empresas em busca da redução de custos, levou a uma movimentação de mercadorias, produtos e componentes, jamais visto na história da humanidade. Para produção em escala de mercadorias é sempre considerado os salários, e certas condições como infraestrutura, qualificação da mão de obra e logística. O mercado interno dos países produtores/exportadores e os custos de deslocamento das mercadorias para os grandes centros contavam pouco, pois os baixos salários compensavam.

No entanto, à medida que a tecnologia avançava na produção, os custos da mercadoria força de trabalho vão se tornando sem importância. A logística, em particular o que diz respeito ao armazenamento e distribuição das mercadorias, passa agora a ser considerada nos custos finais. Produzir em indústrias automatizadas, muda muito pouco os custos da força de trabalho se a fábrica está operando em solo chinês, americano ou europeu. Passa fazer diferença, tornando a produção das empresas e países mais competitiva, a queda dos custos com transporte e armazenamento das mercadorias, ao se produzir nos grandes mercados consumidores ou em suas imediações em fábricas automatizadas, em condições de operar 24 horas ininterruptas, e capazes de adaptarem rapidamente a produção à demanda sem desperdícios e superprodução. 

Várias indústrias instaladas na Ásia com a produção direcionada para exportação estão retornando ou mostram intenção em retornar ao solo pátrio, pois já não precisam como antes de força de trabalho barata e vão economizar em logística. Por outro lado, o encarecimento do trabalho nos países asiático deixa-os menos atrativos para as empresas que produzem para exportar, que entre o uso intensivo de força de trabalho e automação, estão optando pela segunda com incentivos dos governos dos países de origem.

No entanto, se a automação pode ser a saída para parte das empresas na concorrência global, mesmo aumentando a produção e reduzindo inclusive os preços das mercadorias pelo aumento da produtividade, faz cair à acumulação da "riqueza abstrata", que é o objetivo final da produção capitalista, pela expulsão da substância do valor, o trabalho. E o que à superfície aparenta uma solução, tende aprofundar a crise da forma de produção capitalista e do dinheiro.



23.02.2015

terça-feira, fevereiro 10, 2015

É possível o novo governo grego impedir o caos social?

Rall

A novidade na Europa, a chegada de uma coligação de esquerda ao poder na Grécia, parece com que assistimos no Brasil há doze anos. A diferença é que na Grécia, além da reação do chamado mercado, tem-se um discurso intransigente dos governos europeus querendo enquadra a pequena rebelde. Aqui no Brasil, buscou-se uma acomodação rápida com o capital, convidando para o comando da política econômica um executivo de grandes bancos, confiável ao meio empresarial nacional e internacional para acalmar os ânimos.

O discurso de campanha que aparentava novo, em nome da “governabilidade e do desenvolvimento” revelou-se tão velho quanto aos demais no apoio sem limites à valorização do capital, com políticas danosas ao ambiente que agora se revela com toda força na seca resultante das mudanças climática pela destruição da Mata Atlântica, Floresta Amazônica e dos mananciais no entorno das grandes cidades. Não se podia esperar nada diferente de uma formação estatal que nos primórdios do capitalismo teve papel decisivo na acumulação e depois como guardiã das garantias jurídicas e da segurança necessária à valorização do capital, cuja lógica não muda em função das trocas de governo.

A Grécia, com sua dívida astronômica com os bancos da Europa, superior a 175% do PIB, vai resistir às bravatas de seus parceiros ou capitular? Por trás dessa pressão estão os bancos centrais e os bancos privados europeus que precisam manter a ilusão de que receberão com juros o dinheiro enterrado para sempre nesse País. Mas, há também o medo que um governo bem sucedido na defesa dos interesses locais, ao resistir à violência do capital internacional, faça surgir movimentos semelhantes em outros países da Europa. E os sinais de que isso possa acontecer começam a surgir: recentemente assistiu-se uma grande manifestação em Madri organizada pelo movimento “Democracia Real Já” (Podemos), também uma frente de esquerda de tendência díspar.

Ainda é muito cedo para dizer o que vai acontecer.  No entanto, é necessário ter claro que a Grécia, um País em crise, encontra-se num Continente aonde a crise piora a cada medida tomada pelos seus governantes para resolvê-la, e que faz parte de um mundo capitalista em crise terminal. O novo governo grego, apesar do ímpeto e desejo de resolver os problemas, o que pode fazer é mostrar, a partir de uma análise crítica, que a crise não se resolve dentro dos limites da sociedade capitalista, tornando urgente a discussões de alternativas, mesmo que não se tenha claro ainda qual o rumo a ser seguido. Para isso, porém, faz-se necessário uma ampla consciência crítica.

Nas condições dadas, a questão social pode no máximo ser mitiga, mas não resolvida, se o capital internacional for forçado aceitar redução da dívida e negociar em condições vantajosas para Grécia o que sobrar. O que não é certeza. O mais provável é que seus representantes usem métodos truculentos, chantageando e ameaçando derreter as finanças do País, para garantir seus interesses mesmo que lhes custe caro. 

No afã de resolver os problemas, há o risco dos novos governantes gregos caírem no pragmatismo da Realpolitik, tão comum nessa fase de declínio do capitalismo entre as esquerdas, e que, quando no poder, restringe-se a administrar a crise. Evidencia-se nos países mais duramente atingidos pela crise, tendência à exacerbação do discurso sexista, racista e antissemita, com conotações nacionalistas, pois bem sabem seus mensageiros que encontra ressonância principalmente no desespero das classes médias empobrecidas e nos sujeitos excluídos do mercado. É curioso saber como uma frente de esquerda que surgiu a partir de um movimento social de resistência, vai lidar com esse discurso interna e externamente.

O grande problema numa sociedade fetichista é que as mudanças pode não acontecer obedecendo à vontade dos que detém o poder e na velocidade requerida. Pode, inclusive, tomar direções surpreendentemente diferentes do desejado, como se tem frequentemente observado. Mesmo sobrando apoio e firmeza nos enfrentamentos, isso não é suficiente para mudar os rumos das coisas: o mais comumente assistido o aguçamento da crise e a degradação das condições humana, mesmo em países que fazem a gestão da crise em condições vantajosas quanto à disponibilidade de recursos.

Nesse início deste século, os movimentos que despontaram na periferia do capitalismo, ou se afundaram direto na barbárie, e os exemplos vão do Egito, Líbano, Síria, os países da chamada “Primavera Árabe”, até Venezuela aonde as taxas de homicídios explodiram nos últimos anos; ou, como no Brasil, onde se buscou a conciliação com neoliberalismo garantindo os privilégios dos mais ricos em troca de distribui migalhas aos mais pobres, e permitindo a “captura” do Estado por grupos políticos em aliança com  ,grandes empresas públicas e privadas.

Em muitos países o Estado em desagregação transformou-se em casamata de grupos de interesses, e bandos armados proliferaram sem controle, submetendo a população pela violência e o medo. Por outro lado, o que pode ser classificado como movimento social, prisioneiros que são das categorias do modo de produção capitalista – trabalho abstrato, mercadoria, valor, dinheiro, Estado e mercado - não conseguem enxergar saídas além da sociedade que dizem combater.

A subida do Syriza não vai muda o caráter do Estado e a sociedade grega. O conjunto de instituições que dão sustentação a funcionalidade dessa sociedade vão continuar intactas, executando suas tarefas como antes, independentemente de quem nele está no comando. Na condição atual do capitalismo, os movimentos que abalaram e desorganizaram o Estado burguês ou o que restava deste, mostraram-se incapaz de oferecer alternativas viáveis. A tendência tem sido sempre o aviltamento da situação e as forças políticas que aí se instalam, ao não se entenderem, digladiam-se e armam trincheiras na esperança de surpreender inimigos vindos de todos os lados. No Norte da África e em outras regiões do planeta, à medida que os conflitos se agudizam, os grupos políticos cindidos transformam-se em bandos armados prontos a impor pelo terror seu domínio sob os territórios ocupados.

A Grécia não está livre do caos e da violência se a crise social não for rapidamente aliviada. A “troika”, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional, pressionada pela Alemanha, ao puxar a corda além do que seja possível à sociedade grega suportar, pode deixar a crise inadministrável e acelerar o processo de desagregação social, cujas repercussões devem ultrapassar as fronteiras nacionais. A Grécia pode ser o Lehman Brothers da Europa. Entretanto, no momento de crise categorial do capitalismo, a construção de uma nova sociedade em cima dos escombros materiais e espirituais da sociedade capitalista, não passa pelas vias partidárias e pelo Estado moderno. É necessário que surjam movimentos sociais que resistam à tentação de caminhar por essas vias e distanciem-se dessas formas de organização próprias da sociedade capitalistas, sem, no entanto deixar de reconhecer que existem.      


10.02.2015