domingo, março 26, 2017

Carne fraca ou capitalismo em putrefação?


Rall

O mais recente caso de corrupção no Brasil, agora envolvendo a cadeia de produção de proteína animal, agentes do Estado e políticos trouxe à tona o que todos sabiam: quem já por mais de uma vez não comprou carne estragada bem embaladas nos supermercados e açougues ou não teve uma diarreia alimentar que se manifeste. Dar para sentir o silêncio! Desavisados, acreditavam que era só desleixo dos estabelecimentos comerciais que mantinham a refrigeração precária para economizar na conta de energia, não deixa de ser parcialmente verdadeiro. Mas o escândalo atual mostra que os tentáculos do monstro se estendem para bem mais longe: se as mãos sujas estão nas gôndolas precariamente refrigeradas dos estabelecimentos comerciais contaminando os alimentos, a cabeça está na indústria e o coração palpitante no Estado, com gente ansiosa pelo próximo presente.

Uma coisa é certa: fatos como esse e as diarreias mentais provocadas é só a ponta do iceberg, tem muito mais coisas enterradas pelo mundo à fora, junto com as vítimas dos três séculos da história do capitalismo, que jamais serão reveladas. A medida que a crise do capitalismo se agrava a tendência é aumentar a falsificação de alimentos e de outros produtos, acrescido de alguns temperos picantes para camuflar o fedor.

Há anos atrás, tive a oportunidade de ouvir a história contada por um agente sanitário, sobre a interdição da atividade de um açougue que recebia pelos fundos restos bovinos destinados ao lixo para serem processados. Depois de um rápido tratamento eram transformados em carne moída que ia rechear esfirras saborosas à paladares diversos, distribuídas por uma grande rede fabricante desse produto. Segundo o proprietário do açougue a receita não era dele, mas fornecida pelo dono da encomenda. Disse que vendia do boi o que procuravam, até os excrementos para adubo.

Podemos até concorda que máximo aproveitamento do bicho é parte da nossa cultura tropical desde os tempos das Casas Grandes e Senzalas. Vide a feijoada, o sarapatel, a dobradinha e a rabada, todos pratos saborosos, muitas vezes cozidos sem a devida preocupação com os cuidados higiênicos necessários. Aí paladar e qualidade do consumido se misturam, e o nariz é o instrumento utilizado para qualificar o que é bom, e jogar fora o estragado.

No capitalismo o que interessa não é a qualidade dos produtos, mas o retorno monetário que se vai ter daí, quanto dinheiro pode ser feito com a produção e venda das mercadorias. Portanto, o estragado se maquiado pode não ser jogado fora. Os que produzem e distribuem os produtos que chegam às “mesas das famílias” em embalagem reluzente, utilizadas para ocultar os verdadeiros conteúdos, inclusive as características sociais do trabalho, estão interessados no dinheiro que pode ser gerado e não no bem-estar do “consumidor”. Aliás, o termo “consumidor” expressa bem como homens e mulheres são vistos pelo mercado e seus agentes que não enxerga necessidades, mas quanto podem os indivíduos consumir para que haja a realização da mais-valia, a única coisa que interessa por expandir o capital, as demais são decorrentes, inclusive a qualidade sempre precária quando exigida.

No capitalismo, o valor-de-uso, ou seja, a utilidade dos objetos produzidos como mercadorias é o que menos interessa. Só interessam enquanto veículos de valorização do capital. Se a celulose do papelão e outras sujeiras temperadas como alimentos vendem e satisfaz o paladar do consumidor lapidado pelo marketing, pode até não ser caracterizado como fraude se aumenta a lucratividade de certas empresas em conformidade com a lógica cega do capital. O Estado, enquanto o grande Leviatã, aparentemente a serviço do equilíbrio social, deveria intervir e pôr limites no caráter destrutivo do capital. No entanto, seu papel regulador vem se apagando a medida que a crise se agrava e aumenta a captura de setores deste por interesses privados. Num processo que parece regride aos primórdios do capitalismo, onde o Estado desempenhava papel determinante na acumulação primitiva organizando guerras e saques, agora, além das guerras, age na geração de capital fictício imprimindo dinheiro sem valor, antes considerado fraude, e na administração autoritária da crise sem, no entanto, resolvê-la.    

As autoridades da exigentes Europa e dos demais países desenvolvidos, deveriam olhar bem ao seu redor e não manipular com um discurso de que o problema é só do outro. Se os países da periferia do capitalismo têm sua miséria social e moral ampliada pelo impacto da escassez do dinheiro, tornando-se mais evidente o vale tudo pela acumulação nas economias colapsadas pela crise do valor, a lógica que os afeta não é diferente da mesma que levou a Volkswagen pagar bilhões de euros nos processos abertos contra a falsificação de resultados da emissão de poluentes pelos carros por ela fabricados, através de um programa intencionalmente desenvolvido para tal. Para não ser maçante fiquemos com essa lembrança entre milhares de outras já esquecidas pela memória coletiva obnubilada por uma subjetividade esgarçada pela desesperança de quem teima em buscar saídas nos limites do capitalismo. O chamado escândalo da “carne fraca”, assim como outros, deve ser visto com o ampliar de uma lupa do que estar em gestação no mundo das mercadorias, não importa o estágio de desenvolvimento dos estados-nação.

Quando o processo de valorização na economia real para e o capitalismo em profunda crise não é mais capaz de atingir seu objetivo de acumular “riqueza abstrata”, tudo é de se esperar para atender aos impulsos do “sujeito automático”, que dá a forma a sociedade burguesa e molda a subjetividade de um viver para fazer mais dinheiro: da reembalagem de alimentos estragados, com ajuda de temperos fortes para dissimular o odor e dar gosto a comida dos famintos, as pirâmides financeiras e emissão de dinheiro sem valor pelos bancos centrais, ao surgimento de um nacionalismo regressivo, com fortes doses de sexíssimo, racismo e discriminações de toda ordem própria de um patriarcalismo exacerbado que tende aumentar a violência social e estatal, desembocando em guerras permanentes e não declaradas. Nesse estágio da crise, onde a competição chega ao extremo, a única energia que brota das entranhas do capital em fermentação putrefato, e que afeta desde bem-nascidos e privilegiados aos deformados pela miséria em que estão mergulhados, é a pulsão da morte.   


26.03.2017