Rall
Quando
a questão é o possível fim do capitalismo as confusões são muitas. Alguns analistas
veem nas novas tecnologias que levam um aumento da produtividade e automação da
produção uma possibilidade de superação dessa forma de produção. Porém, não é
difícil perderem-se em suas análises. Em entrevista ao Jornal Valor econômico,
Paul Mason não foge à regra.
Segundo ele, “o desejo de compartilhar não apenas informação, mas também bens e
serviços, irá derrubar as margens de lucro e inviabilizar monopólios e controle
de preços pela elite financeira. Esta, diz Mason, terá seu protagonismo
substituído por um modelo mais democrático, calcado no espírito colaborativo já
revelado em criações comunitárias como a Wikipédia e em experiências locais
como os governos de esquerda em cidades espanholas, como Madri e Barcelona. ” Diz
que Marx errou ao acreditar que a emancipação humana não poderia acontecer
dentro do capitalismo. E atribui a tendência na queda da margem de lucro (Marx)
ao desejo de compartilhar informações, bens e serviços.
Salta aos
olhos que a economia mundial, principalmente dos países desenvolvidos, só se
mantém depois do nocaute de 2007/2008, com uma injeção jamais vista de capital
sem substância e com crédito subsidiado. Houve toda uma mobilização para
geração de mais capital fictício através da compra de papéis podres pelos
bancos centrais para salvar bancos e empresas em dificuldades, de títulos emitidos
pelos governos em grande quantidade e empréstimos subsidiados a bancos
quebrados e a empresas de rentabilidade duvidosa. Busca-se compensar a atual
minguada produção de mais-valia, antecipando pelo crédito o consumo da mais
valia-valia futura e aumentando dívidas impagáveis para alimentar a economia
global que sem potência para gerar valor não mais consegue uma retomada
autônoma. Nesse sentido pode-se falar em crise geral, mesmo em situações de
pleno emprego como aparenta ser nos EUA e do volume de dinheiro disponível nas
instituições financeiras e em circulação. O que de fato se observa é uma
simulação gigantesca de acumulação real de capital.
O
dinheiro abundante, porém sem valor, estar financiando através dos fundos de
investimentos novas tecnologias que aumentam a produtividade e dispensam força
de trabalho, reduzindo ainda mais produção de mais-valia e expandindo o consumo
improdutivo, num processo que auto alimenta a própria crise. Mesmo quando
reciclado na produção de mercadorias, foge a lógica de valorização do capital.
Portanto, do ponto de vista da reprodução real da “riqueza abstrata”, que
é o objetivo final do capitalismo, a economia não está funcionada apesar das
aparências.
A crise, relacionada
com a impossibilidade de valorização do capital na economia real, como
consequência da revolução tecnológica e do aumento da produtividade forçada
pela competição entre capitais, vem tornado supérflua a força de trabalho na
produção. Nos últimos 30 anos a racionalização da estrutura produtiva expulsou
mais trabalho do que absorveu. Os níveis de produtividade atingidos vêm
impossibilitando esse modo de produção gerar “riqueza abstrata” em quantidade
suficiente. As empresas, em busca de lucratividade, entram em concorrência mortal
e são pressionadas a se “armar” incorporando tecnologias que aumentem a
produtividade, sem que seus agentes tenham consciência de que as que vencerem a
batalha, farão às custas da liberação de “trabalho abstrato” da produção, substância
do valor, sem o qual não é possível a valorização do capital. Esse “processo
cego do sujeito automático” (Kurz), incapaz de superar as contradições
internas, move o capitalismo em direção ao aprofundamento da crise estrutural.
Nesse contexto,
pode-se entender o “compartilhamento” como uma necessidade operacional do
capitalismo, reforçada pelo uso de novas tecnologias e como forma de enfrentar
momentaneamente dificuldades sociais postas pela crise. Mas é um equívoco
acredita que a cooperação entre indivíduos atomizados, sob hegemonia do capital
ou a partir de iniciativas sociais visando mitiga os efeitos da crise, pode
levar a superação do capitalismo, mantendo-se as bases de produção vigentes
como pressupõe Mason. A moderna gestão empresarial já trilha esse caminho como
forma de melhor organizar a produção e aumentar a produtividade, forçada pela
concorrência que não deixa de existir apesar dos compartilhamentos, dos
monopólios e oligopólios setoriais que tendem a se constituir.
A “cooperação” que não
ocorre entre indivíduos livres, mas sob o tacão fetichista do fim-em-si do
capital, não se dar só a nível interno das empresas, onde o compartilhamento é
uma exigência cada vez mais presente, apesar da acirrada concorrência. Estende-se
a produção global, tornando-se quase impossível a sobrevivência de empresas que
atuam fora dessa lógica que se estabelece de forma acelerada no mercado global.
O que são as chamadas “cadeias globais de valores e de suprimentos” que vem rapidamente
se consolidando em todo mundo facilitadas pela tecnologia da informação, senão
redes de produção que abrangem diferentes áreas geográficas, de países a
continentes, onde tende-se compartilhar informações e a produção de bens e
serviços? Essa tendência a interdependência no capitalismo agora mais acentuada,
como forma inclusive de aumentar a produtividade, de racionalizar custos e
distribuir de forma desigual a escassa produção de mais-valia, é o grande
obstáculo as pretensões isolacionistas de Trump e Theresa May e para os que
acreditam que manobras cambiais que possam levar a desvalorização da moeda
resolvam o problema do crescimento e do desemprego.
Um outro equívoco é
achar que a quebra do monopólio do sistema financeiro e da indústria de
tecnologia vai criar condições para aprofundar o compartilhamento que possa
levar ao socialismo. Não entende que o crescimento do sistema financeiro, numa
velocidade superior aos outros setores da economia, garantindo a expansão sem
limite do crédito e da geração de capital fictício, é um sintoma da crise e ao
mesmo tempo o meio encontrado de empurrar para frente o colapso da forma de
produção capitalista. Como a produção de mais-valia torna-se escassa com a
terceira revolução industrial por tornar supérfluo o trabalho humano - substância
do valor - a forma encontrada para manter o capitalismo em aparente normalidade
foi a geração de capital fictício pelo mercado e pelo o Estado, “simulando” a acumulação
que já não é possível na economia real, com manobras contábeis que antecipa um
valor futuro que deve não se realizar. Isso exigiu o crescimento do sistema
financeiro privado e estatal, com capacidade de alimentar permanentemente
créditos e bolhas, mesmo sabendo-se que mais na frente as bases de sustentação
cedam e as pirâmides financeiras desmoronem sobre o próprio peso, desencadeando
crises com impacto em toda economia.
Esse fenômeno de
crescimento sem limites da “indústria financeira” – o nome expressa uma “abstração”
fantasmática, cuja a magia é transformar dinheiro em mais dinheiro sem a
mediação da mercadoria força de trabalho, mas subordinado a lógica do sistema
do “trabalho abstrato” autonomizado - como forma de sustentar a combalida
economia, envolve a produção e a distribuição de mercadorias, os estados, as
empresas e o dia a dia das pessoas, todas amarradas ao crédito, numa teia
complexa denominada por alguns de “financeirização”, que submete a totalidade
da economia e da sociedade as oscilações dessa forma instável, ou como se diz
na gíria dos operadores financeiros, ao “humor do mercado”.
Na mesma velocidade em
que cresce o capital sem substância que alimenta esse fenômeno gerado em
transações espalhadas no conjunto da economia - uma inversão na forma de
produção real de “riqueza abstrata”, onde a mais-valia gerada na produção deveria
ser distribuída na sociedade na forma de lucro, juros, renda da terra, impostos
que financiam os estados e setores improdutivos - vira pó nos próximos
distúrbios financeiros sempre de dimensões crescentes. Em 2007 / 2008 quando a indústria
imobiliária alimentada pelo capital fictício em todo mundo, mas principalmente
nos EUA, sofreu retração com a interrupção do crédito que refinanciava as
dívidas num movimento ascendente, houve uma brutal desvalorização dos imóveis enquanto
a crise se esparramava de forma assimétrica para a economia global.
Portanto, não se pode
falar em acumulação real a partir da expansão do dinheiro sem valor, do capital
fictício, mas de “simulação” que não deixa de ser a “pós-verdade” do
capitalismo em crise. Mesmo quando reciclado na produção, como aconteceu com os
imóveis em várias regiões do planeta, o capital fictício deixa sua marca de destruição
aos primeiros sinais de abalos financeiros, com as dimensões que lhes é própria.
Reportemo-nos novamente a 2007 / 2008 quando teve início a chamada “grande
recessão”: com a interrupção do crédito e forte desvalorização de capitais
imobilizados, o sistema financeiro e a indústria imobiliária, mais expostos as
bolhas do capital dessubstancializado, foram os primeiros colapsar nos países
desenvolvidos, seguidos pelo restante da economia mundial em tempos e
intensidades diferentes.
Apesar da contração da
economia ter ocorrido quando a bolha de capital fictício atingiu seu limite, a saída
visualizada pelos bancos centrais para impedir que a economia continuasse deslizando
velozmente em direção ao buraco negro sem possibilidade de retorno, foi inundar
mais ainda o mundo com esse capital, inclusive imprimindo dinheiro. Determinante
para isso foi a certeza de que não seria possível retardar esse processo e
retomar o crescimento pela economia real. Acreditava-se numa intervenção
pontual no momento mais agudo da crise e logo sair. No entanto, o processo
continua e não se percebe possibilidade de ser freado sem desarranjos catastróficos
na economia.
Até o entre guerras,
era mais evidente nas chamadas crises específicas ou cíclicas, o expurgo do
capital fictício e a retomada do crescimento. Agora, o que parecia um paradoxo
- a injeção de mais capital fictício num momento de agudização da crise pelo excesso
desse capital – tornou-se na emergência e nos passos seguintes a única saída
para os gestores do capital, apesar das incertezas e inevitáveis riscos do dinheiro
impresso às pressas, ao azeitar a máquina autonomizada do capital fictício, alimentar
uma gigantesca bolha cujo o estouro mais na frente pode fazer 2007/2008 parecer
ruído de traques em salão de festa liberando imperceptíveis fagulhas. Pela
quantidade de dinheiro circulante ou acomodado sem segurança em algum lugar, muitas
vezes superior ao PIB mundial, e pelo rápido crescimento das dívidas pública e
privada, é provável que a super bolha, formada pelo crescimento desmesurado do
capital fictício e pela montanha de dívidas, esteja chegando ao limite.
É um engano achar que
a tecnologia é capaz de definir novos rumos que possam levar a superação da
sociedade burguesa nos limites do capitalismo, considerando que esta continua
aprisionada a máquina do “trabalho abstrato”. Pode-se afirmar que a revolução
tecnológica coloca questões antes não existentes: o desemprego crescente pelo
impacto da automação, a crise do valor e do dinheiro resultante da crise do
trabalho, a crise do Estado, das instituições burguesas que funcionam como
aparelhos ideológicos e se constituíram até agora no amálgama da sociedade
patriarcal produtora de mercadorias. A inviabilidade da equação D-M-D’ se
realizar com a crise do trabalho, não é percebido pelos agentes do capital por
não veem nenhuma relação entre a geração de “riqueza abstrata” e o trabalho. Ao
contrário, ameaçados pela concorrência, na crise tendem a racionalizar ainda
mais os custos de produção com um conjunto de medidas e uso tecnologias que aumentam
a produtividade e dispensam trabalho humano.
Para força de trabalho
supérflua, além das mentiras e manipulações da demagogia populista, no
capitalismo “soluções” estão sempre apostas e vão desde as duas grandes guerras
mundiais, as guerras sectárias onde os bandos armados cultuam a morte como passagem
para o paraíso, as guerras civis longas e atrozes, e pode-se vislumbrar a
possibilidade de uma guerra nuclear limitada ou mesmo total. Se as guerras já
não são mais saídas para crise do capital como foram outrora, a nostalgia desse
passado, na consciência coletiva fetichizada, que aumenta à medida que a crise
se agrava, junto aos surtos narcisístico de demagogos encurralados por suas próprias
mentiras, pode levar o mundo a guerras com armas de destruição total. A lógica
destrutiva do capital tende aguçar a subjetividade afetada a medida em que nos
tempos de dinheiro sem substância e crises onde não se vislumbra saídas, pode-se
não mais distinguir o real do fictício.
Apesar do acúmulo real
de “riqueza abstrata” ser para o horizonte do capital uma miragem sempre mais
distante a medida em que a substância do valor - o trabalho humano - torna-se
supérfluo, a produção de riqueza material, efeito colateral do movimento do
capital, tende a aumentar com o aumento da produtividade, criando-se condições pela
primeira vez na história de superar as carências e atender as necessidades
humana. Os avanços tecnológicos podem criar possibilidades imensas, se liberto
do fim em si do capitalismo de fazer mais dinheiro (D-M-D’ ou D-D’). Porém,
coloca-se a seguinte questão: a emancipação social da forma valor, no sentido objetivo e subjetivo, exige uma ampla consciência e consenso social. Se
atingida essa consciência, nas condições dadas é possível se libertar do “sujeito
automático” e fazer a gestão consciente e planejada da produção conforme as
necessidades sociais e os limites da natureza? É uma questão difícil de ser
respondida, apesar de que se pode afirmar com certa segurança a tendência ao
agravamento da crise enquanto busca-se a superação nos limites lógico do
capitalismo. A tecnologia atrelado ao “sistema do trabalho abstrato”, como
forma de movimento da “riqueza abstrata” (Kurz), é um risco à sobrevivência
humana. A medida em que essa riqueza se torna escassa, asselvaja-se a
competição e os frágeis mecanismos de controles podem não mais funcionar.
18.06.2017