terça-feira, dezembro 26, 2006

A política redistributiva e os limites do Estado

Rall


Diz um velho ditado que alegria de pobre dura pouco. Pelas notícias é o que parece se delinear nesse segundo mandato do Presidente-operário. A política social de distribuição de benefícios para os sem renda, parece dar sinais de esgotamento. Por outro lado, os considerados “classe média”, aqueles que recebem mais de três salários mínimos, viram os rendimentos despencarem em 46% e houve um saldo negativo de dois milhões de empregos nessa classe, ou seja, dois milhões dispensados de suas atividades nos últimos seis anos. Por outro lado o emprego com até um salário mínimo aumentou em 2,2 milhões, segundo pesquisa baseada nos dados da Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, do Ministério do Trabalho), publicados pela Folha de São Paulo de 10 de dezembro de 2006.

Outro estudo do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp mostra que apesar dos 2,8 milhões de empregos criados entre setembro de 2004 e outubro de 2006, houve uma redução da massa salarial de R$ 133 milhões, provavelmente relacionados com a precarização do emprego via terceirização, demissões e contratação de novos contingentes por salário mais baixos.

Tal quadro mostrado pelas duas pesquisas reflete como a economia no Brasil, e, provavelmente, em outros países do terceiro mundo, vem reagindo para se adaptar a violenta competição internacional. Não dispondo de industrias suficientemente modernas e infraestrutura, esses países, incapazes de competir com os países do centro em produtividade, se adaptam como sócios menores do capital internacional produzindo mercadorias baratas às custas da intensificação da mais-valia absoluta. Europa Ocidental, Japão e América do Norte que respondem por cerca de 75% da produção industrial do mundo, necessitam de recursos naturais, mas, também de produtos semi-acabados, geralmente produzidos em indústrias poluidoras, para suas empresas de ponta. É o caso do aço semiprocessado, que é produzido nos países em desenvolvimento a baixo custo e é enviado às usinas sofisticadas dos países do centro. Esse tipo de transação pode significar uma “redução entre 30% a 50% em relação a seu custo caso esses produtos fossem produzidos no país de origem da empresa compradora”, segundo Peter Marsh do Finacial Times.

O Estado em si não produz riqueza. Os recursos para financiar seus projetos são arrancados da produção real através dos impostos, e hoje, mais do que nunca, pela geração de capital fictício. Os recordes na arrecadação de impostos, tão saudados pelos burocratas do poder, tende asfixiar mais ainda a “classe média”, pois essa não escapa da fúria arrecadadora, inibindo o consumo e fazendo patinar o esperado crescimento do mercado interno. Mas, o limite desse nivelamento distributivo por baixo, tende a esbarrar na crise dessa classe, que nos últimos seis anos perdeu quase 50% de seu contingente como mostram as pesquisas e na impossibilidade das bolhas financeiras se expandirem indefinidamente.

Por outro lado o capital só aporta aonde pode acumular. Aqueles capitais acoplados a produção global, mantém-se em ação desde que as condições lhes sejam favoráveis, e isso, no terceiro mundo, traduz-se em salários cada vez mais baixos, daí a grita pela desregulamentação do mercado de trabalho, por condições de infraestrutura para o escoamento de seus produtos a custos acessíveis e possíveis renuncias fiscal. Não sendo assim, tende a levantar âncora e se dirigir para os que oferecem melhores remunerações.

As indústrias que produzem mais para o mercado interno, a maioria a margem do circuito mundial da produção capitalista, geralmente pequenas e médias empresas de utilização intensiva de força de trabalho, além do fraco desempenho do mercado local, são obrigadas a competir com similares que conseguem produzir na China e na Índia principalmente, a custos bem inferiores aos nossos, por utilizarem uma mão-de-obra semi-escrava com baixíssima remuneração. A desindustrialização de setores como os de roupas e de calçados é um exemplo flagrante dessa realidade. A produção limitada e a descapitalização desses setores, que dificulta investir em novos equipamentos para aumentar a produtividade, reforça o círculo de demissões acompanhadas de novas admissões com salários que podem chegar a metade dos antigos funcionários.

O Governo, ao buscar salvar os náufragos, é obrigado a abrir mão de parte de sua receita, agravando mais ainda a crise fiscal do Estado. Para cobrir os déficits dos programas sociais, os parcos investimentos e outros encargos, é levado a captar recursos no mercado, pagando juros exorbitantes que por sua vez geram compromissos financeiros que precisam ser amortizados com superávits primários. São os papeis do governo, que negociados na rede bancária, se multiplicam como do nada se multiplicaram os pães no milagre cristão, como fosse uma inesgotável fonte de riqueza, a usina de geração de capital fictício. E aí todos que tenham alguma sobra de dinheiro, se beneficiam da “ciranda financeira”: o Estado porque consegue financiar suas despesas, os bancos por comprar do Governo papéis rentáveis e vende-los no mercado, as empresas que inflam seus balanços com as aplicações e juros cobrados nas vendas à crédito e as classes abastadas que do nada vêem seu dinheiro crescer.

Frente a esse emaranhado de interesses, os juros que é como se lucra no mercado de papéis, nem sempre é fácil serem reduzidos. Talvez sejam os juros altos, com as aplicações especulativas na bolsa que nos primeiros quatro anos do governo Lula subiu 280% apesar do pífio desempenho da economia real, as maiores bolhas que ajudam alimentar a economia no Brasil. É como se diz: para a sociedade da valorização do valor em crise ruim com elas pior sem elas, é só ver o susto que tomaram recentemente os novos donos do poder na Tailândia, ao quererem controlar, mesmo que timidamente, o capital de curto prazo que ao girar o mundo velozmente, sopra desesperado as bolhas nos quatro cantos do globo para que não se apaguem. Na Tailândia, o apagão da economia em um dia, foi o suficiente para que o governo militar rapidamente voltasse atrás e se ajustasse novamente às exigências do capital global, mesmo dispondo do poder das armas.

Se o capitalismo para existir ainda necessita de uma base real na produção, o louco desacoplamento do dinheiro dessa base, reproduzindo-se sem substância numa velocidade e volume jamais vistos, mesmo que em alguns momentos turbine o crescimento econômico pelo aumento artificial do consumo, mais tarde ou mais cedo a realidade vai exigir um acerto de contas. Os sinais da crise são cada vez mais evidentes, e, pelo intrincado da economia mundial, talvez seja essa a mais global e a mais severa das crises do capitalismo. Os Estados, todos já na corda bamba pelos desequilíbrios financeiros, irão rapidamente a nocaute e com eles as cambaleantes políticas sociais.


26.12.2006

domingo, outubro 08, 2006

Sobre o livro de Anselm Jappe

Rall



Nesse momento em que parte da esquerda ainda não saiu do outro lado do muro ou saiu para aderir as reformas neoliberais, o livro de Anlsem Jappe, “As aventuras da mercadoria”, é muito bem vindo. Em São Paulo, quando o livro foi lançado, acompanhado de um filme de Guy Debord no Cinesesc Augusta, um número inesperado de pessoas, principalmente jovens, mostrou que existe alguma coisa no ar.

Eventos como este indica que esquerda tradicional que no poder não se diferencia da direita tradicional, haja vista a sucessão de escândalos, já não consegue empolgar com os velhos chavões. A crítica à sociedade mercantil parece começar a fugir das fileiras partidárias e ganha as ruas com merecida liberdade. O socilogismo institucional, que por anos alimentou o movimento social, dá sinais de esgotamento e cede lugar a nova crítica não presa a estereótipos.

É nesse contexto que surge o livro de Jappe. Em linguagem acessível mostra a importância da crítica do trabalho, do valor, da mercadoria e do fetichismo em Marx, principalmente no primeiro capitulo do “O Capital” , para compreensão da sociedade da mercadoria e da crise social na qual afundamos cada vez mais, como produto da crise da “valorização do valor”, ou seja, da sociedade capitalista.

Faz um apanhado crítico da teoria do valor retomada por Gyorgy Lukács em “História de consciência de classe” e Isaak Rubin, nos anos 30, até autores mais recentes como Robert Kurz na Alemanha, Moishe Postone nos Estados Unidos e Jean-Marie Vicente na França, que chegaram a conclusões semelhantes sem nenhuma relação um com o outro, em estudos isolados.

Mostra que o trabalho, enquanto atividade humana que produz valor, é imanente à sociedade capitalista e que a diferenciação entre trabalho concreto e trabalho abstrato, o trabalho concreto como o “pólo positivo que na sociedade capitalista é violado pelo trabalho abstrato” apaga-se, pois o primeiro só existe enquanto base do segundo. Portanto, a superação da sociedade capitalista pressupõe o fim do trabalho assalariado, considerando que no processo incessante de valorização do valor, trabalho e capital são faces de uma mesma moeda.

Chama atenção a clareza com que é escrito o capítulo “A crise da sociedade mercantil”, que trata de questões muitas vezes pouco valorizada pela esquerda, mas fundamentais para o entendimento do capitalismo nos tempos atuais como o trabalho improdutivo e o domínio do capital fictício sobre a produção real, como forma de dribla a crise do valor.

Com a revolução da micro-eletrônica, o capitalismo não conseguindo definitivamente compensar o decaimento do valor com a ampliação do trabalho produtivo, todas as fichas são apostadas no chamado setor terciário, cuja expansão agravara mais ainda a crise do valor com o aumento do trabalho improdutivo. Os problemas não tardaram. Como resposta, vieram as reformas neoliberais, privatizando as atividades de seguridade social e de infraestrutura, antes tidas como de responsabilidade do estado, e cortando fundo o que cheirava a supérfluo nas empresas privadas, incluído aí benefícios como assistência médica, fundos de aposentadorias e outros resquícios das conquistas trabalhistas no fordismo. Os “encargos secundários” que não poderam ser varridos pela fúria neoliberal são terceirizados e, a partir daí, incrementa-se a mais-valia absoluta.

Apesar da ineficácia das medidas, a crise de um sistema em colapso é adiada com ajuda das bolhas financeiras que se manifestam no endividamento pessoal, das empresas e do estado e na supervalorização das ações, dos imóveis, das commodities e outros ativos. A especulação financeira de toda ordem tem criando um volume absurdo de dinheiro totalmente descolado da produção real, que mais tarde ou mais cedo terá que prestar contas através da inflação ou da deflação.

À luz da crítica do valor analisa os escritos de alguns autores em moda como André Gorz e, principalmente, a “versão pós-moderna melhorada do operaismo italiano dos anos setenta” de Antônio Negri e Michael Hardt em ácida passagem intitulada “A última mascarada do marxismo tradicional”. Em diálogo tenso mas amistoso, busca visualizar caminhos ao impasse em que se encontra o movimento social que ainda se move dentro do leque de opções determinado pela sociedade capitalista, enquanto agrava-se a crise.

Uma advertência: apesar das evidências de que o capitalismo pode ter chegado ao limite com revolução tecnológica da micro-eletrônica que faz ruir o valor, ao mesmo tempo em que cria possibilidade do alvorecer de uma sociedade não assentada no trabalho abstrato e no fetichismo, não fica fora dos horizontes a prevalência de um capitalismo cada vez mais destrutivo, afundado na barbárie vinda de todos os lados.

O livro de Jappe pode ser encontrado na Livraria Cultura ou na Editora Sem Fronteira, Fortaleza, telefone (85) 3081-2956, e-mail: criticaradical@bol.com.br


08.10.2006

domingo, setembro 03, 2006

Os Presidentes e a crise da Volkswagen

Rall


Duas notícias nos jornais diários das últimas semanas chamaram atenção: a primeira, a ameaça da Volkswagen de fechar a fábrica de São Bernardo, berço do “sindicalismo moderno” e da militância do Presidente sindicalista. A outra, refere-se ao exponencial crescimento do emprego terceirizado em 127% em dez anos, de 1995 até 2005, segundo pesquisa do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Os fatos que parecem isolados, são, na verdade, manifestações de um mesmo fenômeno: queda da rentabilidade do capital industrial como expressão da crise do valor.

A Volks simbolizava o Brasil moderno que queria ingressa num salto no mercado mundial, não mais através do café e do açúcar exportado, mas da política de portas abertas ao capital transnacional, cujo ícone do período foi o alegre desfile do sorridente Presidente Juscelino em um fusquinha aberto. Com a indústria automobilística surge aí um novo momento da “modernização recuperadora” (Kurz), iniciada por Getúlio Vargas com a instalação da indústria de base e a campanha do “Petróleo é nosso”.

A Volkswagen e outras montadoras, ao se instalarem em São Bernardo do Campo, davam uma contribuição “pioneira” na geração de um novo pólo industrial. Com ele e nos intramuros das multinacionais, nasce o “sindicalismo de resultados”, cujo maior orgulho é ter forjado o operário-Presidente. Num primeiro momento, e, ainda, no apogeu do emprego farto na indústria, Presidente do maior e mais poderoso sindicato da América Latina. Agora, na crise do trabalho e no declínio do sindicalismo, Presidente do maior país do Continente.

Deixando de lado a dura coincidência, resta-nos uma pergunta: estaria a Volkswagen chantageando o governo em busca de empréstimos e outras vantagens como sugere setores do governo e a parte da imprensa? Quem conhece a empresa de São Bernardo sabe que pelo menos duas linhas de produção não são mais rentáveis: a do Gol e da Kombi. Há uma diferença enorme entre essas e a linha de produção do Fox, que apesar de seu grau de automação começa ficar para trás quando comparada com outras montadoras.

A acirrada competição internacional exige ajustes dramáticos, ou, até quem sabe, o encerramento das atividades. A nível mundial há uma sobrecapacidade da indústria automobilística, que resiste ao tampo com a introdução de novas tecnologias de produção dispensadoras de força de trabalho. Por outro lado, na China e no Leste Europeu há mão-de-obra sobrando, ávida para ser empregada a qualquer preço, ameaçando os trabalhadores bem estabelecidos nas indústrias do Ocidente. A saída que agora se busca é a destruição dos investimentos não rentáveis, transferência da produção com dispensa em massa e a redução salarial, mesmo que isso signifique a desindustrialização de países inteiros. No Brasil , a baixa formação de capital fixo é um sintoma dessa realidade.

Com o aumento da produtividade e a expulsão do trabalho da produção, o capitalismo está “a serrar o galho em que se encontra sentado” (Anselm Jappe), e busca compensar a queda da rentabilidade com artifícios financeiros e fusões. Hoje toda empresa que se preza tem seu banco que lhe garante uma sobrevida contábil. As fusões, que vêm acontecendo com enorme ferocidade, na mesma proporção que liquidam empresas e jogam milhares nas ruas, aumenta artificialmente os preços dos papéis das empresas canibais.

Cientes do risco de não fecharem a conta, mesmo tomando todas essas medidas e produzindo a todo vapor capital fictício, ante as ameaças de transferência da produção para outros países, buscam-se outros meios para reduzir custos, agora em cima dos que não conseguem dispensar. É quando entra a terceirização, que é a forma que o capitalismo em crise encontrou para reintroduzir a mais valia absoluta, esticando a carga horária e achatando os salários. Um destaque especial para esse processo apelidado de “precarização do emprego”, cabe aos chamados PJs (pessoa jurídica). Esse empresário-empregado, cuja característica é a introjeção de práticas sadomasoquistas de autoexploração é o grupo que mais cresce entre os terceirizados no País. Essa excrescência do mundo do trabalho em crise, tende a explodir com o artigo 129 da “MP do Bem”, aprovada pelo Senado e sancionada pelo Presidente Sindicalista.


02.09.2006

domingo, julho 23, 2006

O porquê dos juros altos e o discurso da esquerda

Rall


É ingenuidade imaginar que só os banqueiros são beneficiados com os juros altos. Todo setor produtivo como também o comércio e serviços, se beneficiam ao vender a crédito de duas maneiras: 1. aumentando as vendas, 2. aumentando seus lucros cobrando juros exorbitantes. Hoje as empresas ou possuem seus próprios bancos ou financeiras ou trabalham em parceria com o setor financeiro, beneficiando-se do mesmo jeito.

Suspeito que esses mecanismos são utilizados para compensar a baixa rentabilidade oferecida pela economia real. É uma forma disfarçada de manter os preços altos, não deixa de não ser uma forma de manter inflação para uma camada da população que só pode adquirir bens à prestação.

Com os juros altos, ganha os bancos, ganha o comércio e a indústria e a parcela privilegiada da população que pode comprar à vista, com descontos, e ainda investir suas sobras na ciranda financeira. Em resumo: os juros altos são uma forma de transferir renda dos menos privilegiados para os mais privilegiados, mecanismo nada novo em nosso capitalismo tupiniquim.

Isso exige que o Estado sinalize para o mercado que os juros vão se manter em determinados patamares. Por outro lado, se os juros caem por ação do Banco Central e ameaça os rendimentos dos privilegiados, “a mão invisível” do mercado reage aumentando a inflação como forma de manter os rendimentos dos agentes econômicos.

A grita de setores do empresariado, geralmente os mais endividados ou os que estão fora da economia de escala, diz respeito aos seus empréstimos e não o que repassam para os consumidores na forma de juros altos. Ninguém abre mão de seus lucros porque o vizinho está fechando as portas ou o outro está a morrer de fome. Não há discurso moral que reverta essa lógica irracional.

Além das camadas da população que antes não tinham como se salvar da inflação e agora dos juros altos, a conta é paga também pelo Estado que para isso penaliza as camadas não privilegiadas com seus impostos desiguais. Os desfavorecidos são achacados duas vezes: pelos altos juros do mercado e pelos impostos do governo. Eis aí uma hipótese para ajudar a explicar a enorme concentração de renda nesse país.

Ao contrário do que muitos imaginam, os juros altos talvez seja a bolha que movimenta a ilha de prosperidade cercada pelo mar de miséria que ameaça inunda-la. Apesar dos discursos contrários, pouco pode fazer os agentes econômicos à não ser tirar proveito do que lhe é oferecido nessas circunstâncias, agem como “sujeito automático” na busca do lucro. Não tem ou não precisam ter clara consciência do fenômeno que eles mesmos produzem, mas que lhes é estranho, ao defender seus interesses. Desvendar os mistérios da economia não é seu dever. Se assim não fosse teriam a economia sobre as rédeas.

O discurso da esquerda radical, contra a especulação financeira que esfola o capital produtivo e o trabalho, é no mínimo ingênuo. Aí tem seu ponto de encontro com a direita autoritária de tinturas nacionalista. Tal discurso aparentemente justo, alimenta o populismo de toda espécie, nada muda e geralmente conduz ao sectarismo sem saída. Nesse momento, só a crítica categorial aos fundamentos da sociedade capitalista é realista.
23.07.2006

sexta-feira, julho 14, 2006

O FASCISMO E O MUNDO CONTEMPORÂNEO

Rall


Acho bastante pertinente a discussão sobre o fascismo desencadeado pelo referendo das armas e a análise dos discursos que trazem em seu conteúdo elementos do mesmo, num momento em que manifestações autoritárias são mascaradas pelos instrumentos da democracia. Essa é uma questão que não se esgota fácil e muitas vezes deixada de lado pelas correntes políticas que se dizem de esquerda.

Tenho dificuldade de entender o fenômeno sem uma crítica radical a sociedade burguesa. No entanto, a questão parece não se esgotar aí. Se assim fosse, não existiriam resistências ao discurso fascista ou a condutas caracterizadas como tal. Aí eu me pergunto: o que definimos como fascismo nos tempos atuais que não sejam os xingamentos? Será que o fascismo não é um fenômeno mais amplo do que normalmente caracterizamos em nossa crítica? Uma coisa é certa, a sociedade burguesa em crise tem se tornado cada vez mais intolerante. É intolerante com os pobres que em sua marginalidade são confundidos com bandidos; extremamente intolerante com qualquer tipo de situação classificada como “delito” pelas normas jurídicas e, se flagrado, o indivíduo é jogado na prisão, trem para o inferno sem passagem de retorno; intolerante com os jovens que ao não se enquadrarem nos padrões tidos como “normais”, são acusados de delinqüente e trancafiados nas Febens da vida que tão bem lhes ensinam os caminhos da violência; se hoje um jovem fizer o que fazíamos em nossa juventude está perdido; intolerante com os desempregados que vistos pelo olho assustado dos que estão provisoriamente empregados são classificados como vagabundos. (Moro num prédio de classe média, onde cada vez mais jovens se formam e ficam em casa por falta de emprego. É notória a censura a que são submetidos pelos moradores e até mesmo pelos familiares. Nas conversas estão sempre tentando se justificar como se carregassem a culpa do maior dos pecados). Intolerante com os idosos que por não serem mais produtivos são levados sem piedade para morrer (ou serem mortos?) nos albergues e asilos; intolerante com a mulher vítima de todo tipo de violência; com os enfermos que em sua fragilidade deixam seus corpos serem violados sem nenhuma reação por uma medicina mercantilizada. Em fim, uma intolerância disseminada, principalmente com aqueles que não servem à sociedade do trabalho.

Muitas vezes, a intolerância gerada nos grupos sociais é normatizada pelo Estado em nome da segurança e da defesa do cidadão, o que é grave. Quando na ditadura a intolerância era do Estado, exercida contra os direitos privados, gerava resistências. Hoje, os indivíduos amedrontados, abrem mão das liberdades em troca de uma suposta segurança. A esmagadora vitória do “não” no referendo, já vem sendo interpretada pelos arautos da segurança, como um clamor para que o Estado prenda mais, mate mais... Não é à frente do “não”, que embalada pela vitória, já se fala em um outro plebiscito, agora para aprovar a pena de morte?

A intolerância, uma manifestação do medo e do autoritarismo que grassa a sociedade, apesar de ser um dos componentes do fascismo, por si só não o define, penso eu. O nazi/fascismo surgiu numa Europa dilacerada, assustada com as revoluções “socialistas” e com o movimento operário do pós-guerra, numa Alemanha humilhada, com dívidas de guerra e milhares de desempregados, muitos deles soldados desmobilizados das frentes de batalha.Tinha seus símbolos, suas bandeiras, seus modelos ideais de uma nação de “raça pura” que em nome do nacionalismo, componente importante na trama delirante, tentava chacoalhar a população derrotada, transformando-a em massa para seus objetivos. Era também uma forma de mobilização para a superexploração em nome do dever com a nação. O trabalho, ou melhor, o sacrifício no trabalho, apresentado como nobre, digno de uma raça sem mistura, tinha um papel central no discurso nazi/fascista, estava aí um dos seus pontos de encontro com o stalinismo. Não fazia diferença se o trabalho era na fábrica ou no front, se si perdia vidas com corpos perfurados à balas ou levado ao exaustão nas fábricas militarizadas. Morrer de uma ou outra forma era “passar da Alemanha temporal à Alemanha eterna”.

A compulsão de superar tudo e a todos, interna e externamente, era um dever do cidadão ariano. O outro, um obstáculo, tinha que ser eliminado. Daí a guerra, o anti-semitismo, o extermínio dos judeus e de outros incapazes que “sabotavam com seus atos impuros o potencial do povo alemão”.

O que há em comum entre essa competição extrema, que leva a destruição dos competidores e o capitalismo atual? Na Alemanha nazista os fortes mereciam vencer, aos fracos o descarte. Quais as diferenças e quais os pontos em comum entre a sociedade atual, que na sua insana concorrência exclui sem piedade os não ajustados ao mercado, e a Alemanha nazista que cultuava a morte, vista como desfecho natural para os perdedores, os mentalmente inferiores ou para aqueles que obstaculizavam o ressurgimento da nação alemã formada por um povo puro e vencedor? A morte para os fortes, aqueles que tombam destemidos por esse paranóico ideal, tinha um significado diferente, era a glória. Para esses, as homenagens póstumas, as medalhas do terceiro Reich, a eternidade; para àqueles uma morte que não deixasse vestígios das suas impurezas sobre o sagrado território, os fornos crematórios. A realização e ao mesmo tempo a destruição de obras grandiosas, não importa o sacrifício humano, presentes nos cálculos de Hitler, não são parte da política do capitalismo atual das grandes corporações feita sem disparar um tiro?

As condições sociais atuais, a violência dos grupos mafiosos e a violência institucional, o rancor de uma classe média empobrecida, o medo que se espalha, reforçado pela forma como os meios de comunicação manipulam as informações sobre a violência; o poder desmedido e sem controle das grandes corporações que agem automaticamente em busca de sempre maximizar os lucros, com custos altíssimos para natureza e o homem; um Estado corrompido e preso aos ditames da economia globalizada, tudo isso são “meios de cultura” apropriados para barbárie de toda espécie que brota no cotidiano sem a resistência necessária.


27.10.2005

terça-feira, julho 11, 2006

Um prego no caixão das leis trabalhistas com direito a réquiem tocado por sindicalistas

Rall


Li nesses dias, que chorões sindicalistas, reclamavam da “maldade” contra os trabalhadores que foi a aprovação no congresso da “MP do Bem”, agora sancionada por outro sindicalista Presidente da República. É o choro depois do leite derramado. Coisa para inglês vê como se diz na gíria. O que não se diz é que o artigo 129, do qual reclamavam de araque, já vinha sendo praticado pelo mercado, sem nenhum obstáculo. O processo de terceirização, que há muito vem expulsando das relações trabalhistas a CLT, já não encontrava resistência nos tribunais do trabalho e nos sindicatos, mesmo quando burla a lei tentando mascarar com artifícios o vínculo trabalhista. Antes eram criadas as cooperativas de trabalho, na maioria das vezes pelo próprio empregador, para fugir da legislação. Agora, nem isso necessita: com a “MP do Bem” (brincam até com o nome), promovem o empregado a patrão de si mesmo, dispensa-se os intermediários.

A porta que já vinha sendo arrombada há tempo, abre-se de vez para o capitalismo do vale tudo. Agora todos já podem trabalhar 15-20 horas por dia, produzir sua mais valia absoluta e até se auto-imolar em oferenda ao deus trabalho sem que os tribunais encham o saco. Já não há mais “entulhos” como diz os juristas da modernidade, o caminho foi limpo, todos estão livres para correr alegremente em busca do altar dos sacrifícios.

A extensão dessa medida que aparentemente é dirigida à mão-de-obra especializada e cara será sentida muito mais profundamente do que se imagina. Em poucos anos vamos saber quantos perderam o pouco de direito que lhes davam a condição de ter “carteira assinada”. Os sindicatos que no esvaziamento de suas funções não sabem mais o que fazer para agradar, a não ser distribuir brindes imitando mal os mais lamentáveis espetáculos, aceleram de ladeira abaixo sua queda e se confunde cada vez mais com os interesses do capital.

A renda média do trabalhador em São Paulo despencou 31% em dez anos, entre 95 e 2005, segundo pesquisa do Dieese. Essa situação, que tende a se agravar, não deve ser diferente para resto do país onde os salários são mais baixos. Mesmo com crescimento econômico o desemprego persiste, e todas as pesquisas têm mostrado que a maioria dos empregos criados são de baixos salários e gerados na área de serviços, o que mostra a precarização e a incapacidade da economia de absorver satisfatoriamente força de trabalho disponível com a expansão dos mercados. Trocando em miúdos: o aumento da produtividade, com a utilização das novas tecnologias, movida pela concorrência entre as empresas, têm substituído o trabalho humano por máquinas, não permitindo que a economia, mesmo em alta, crie empregos suficientes capazes de absorver a força de trabalho disponível, tornando-a, em grande medida, supérflua.

Esse é o grande paradoxo de nosso século que os governos, os sindicatos, políticos e as instituições de um modo geral preferem “resolver” com um discurso demagógico e mentiroso da geração de novos postos de trabalho. O problema é sabido, mas sua discussão é negada pelo que pode engendrar. Busca-se saídas mais fáceis para garantir a acumulação com custos sociais altíssimos que só agravam a crise. A MP do Bem faz parte dessa realidade e novas medidas de desregulamentação, tidas como realistas, tendem aparecer novamente, deixando sem peias o mercado para o movimento do capital que em seus estertores sobrevive à custa de bolhas. Mas quando lhe faltar o ar que artificialmente respira, injetado muitas vezes com ajuda daqueles que o condena, espero que requiscat in pace.


21.05.2005

domingo, julho 09, 2006

O CIRCUITO ASIÁTICO DA ECONOMIA MUNDIAL

Como a economia mundial se sustenta em tempos de crise da valorização do capital

Rall


A grande imprensa tem noticiado com freqüência os alertas feitos a China pelas instituições financeiras mundiais para que deixe o yuan (moeda chinesa) flutuar por encontrar-se artificialmente subvalorizado, como medida para reduzir o déficit em conta corrente americano, financiado principalmente, pelos superávits dos países asiáticos. Ora, ao mesmo tempo em que pedem a China mais equilíbrio de sua moeda em relação ao dólar, a economia americana necessita desesperadamente do dinheiro gerado nos superávits chinês. Essa relação de dependência entre as duas economias é que costumam chamar de circuito asiático.

Como funciona? Os países do leste asiático, principalmente a China, produzem mercadorias, com preços bastante competitivos, que são absorvidas por ávidos consumidores americanos. Isso tem gerado um enorme superávit nesses países em relação a maior economia do mundo, dinheiro que retorna barato ao mercado americano na forma de investimentos em papéis com garantias do tesouro. Esse fluxo de mercadorias e capitais é fundamental para o funcionamento da economia dos EUA e o crescimento da economia chinesa, com reflexo no resto do mundo.

Qual a conseqüência disso para indústria? A grande maioria dos produtos exportados pela China sai das empresas americanas aí instaladas, que são beneficiadas pelos baixos salários pagos (em média menos de 1/10 do valor recebido pelo trabalhador americano, quando comparados todos salários da cadeia produtiva). A lógica do capital é da valorização do valor, se no país onde dançam os dragões essa façanha é possível vamos à China. Isso gera um fenômeno um tanto estranho para alguns: nos dois paises, apesar do crescimento econômico, cai o emprego na indústria pelo aumento da produtividade, e ainda, nos EUA, pela fuga de capitais da produção em busca de uma maior rentabilidade, na China pelo impacto tecnológico em uma economia de uso extensivo de força de trabalho.

E quanto ao fluxo de capitais? O dinheiro que retorna ao mercado americano não encontra na produção sua melhor aplicação por ser pouco rentável, a não ser na aquisição estratégica de empresas. Ao aumentar a liquidez, pressiona os juros a longo prazo para baixo, alimentando a especulação no mercado financeiro, nas bolsas e no mercado imobiliário, fazendo expandir com isso as bolhas que por sua vez sustentam artificialmente o consumo, beneficiando as importações, principalmente do leste asiático.

Se o superávit chinês e de outros países não fossem tão importante para expansão do capital fictício, que movimenta a economia mundial a partir dos grandes centros, garantindo o que tem sido chamado no capitalismo-cassino de “efeito riqueza”, em outras palavras, capital-dinheiro destituído de substância, não haveria tanta defesa desse desequilíbrio por economistas de prestígio no sistema. Divergências à parte, todos estão de acordo que esse ainda é o caminho para manter o consumo aquecido.

Saídas dessa encruzilhada, sem apostar em novas bolhas, são dolorosas e passariam necessariamente pela recessão, com a redução do consumo mundial que atingiria em cheio a China e outros países, pois veriam fechados os sorvedouros de seus produtos. A conseqüência da redução dos superávits seria a diminuição do fluxo do dinheiro asiático para o mercado americano, que agravaria mais ainda a recessão e poderia levar a um desequilíbrio de proporções inéditas no orçamento deficitário do governo dos EUA, pela queda da arrecadação e pela redução da entrada de recursos externos.

Numa convergência de interesses, o governo Bush jogou bilhões de dólares no mercado, com os cortes de impostos e juros baixos, que tem sido torrado num consumo perdulário e em investimentos não produtivos. O rombo de quase quinhentos bilhões de dólares no orçamento, agravado com as despesas de guerra, e valor semelhante em conta corrente, para serem financiados necessitam dos recursos dos investidores estrangeiros. Qualquer medida que leve a redução dos superávits de parte dos países desse circuito, teria repercussão imediata na entrada de capitais.

Entre as muitas saídas pensadas para reduzir os déficits está o aumento de impostos e dos juros numa velocidade maior, que ao enxugar o dinheiro circulante, atingiria negativamente o consumo e sem dúvida faria economia cair em recessão, com as implicações já citadas. A combinação de todas medidas teria efeitos semelhantes. Apesar dos esperneio, a posição dos gerentes da crise e de alguns analistas é que a margem de manobra é apertada, um reconhecimento que pouco pode ser feito a não ser administrar a crise e apostar no surgimento de novas bolhas ou rezar para que as existentes sejam infinitas, posição que se ajusta muito bem ao raciocínio dos operadores dos mercados de papéis, distantes da economia real.

O circuito asiático de fluxos de mercadorias e capitais para os EUA é parte da mega simulação encontrada para alimentar a criação de capital fictício e manter alto o consumo sustentado por bolhas. Resta saber se o provável estouro da bolha do mercado imobiliário, que teve origem nos EUA ainda no final dos anos 90 e se expandiu para o resto do mundo, vai permitir o surgimento de outras com o sopro milagroso capital financeiro. Acreditam alguns críticos que após o estouro da bolha nas bolsas em 2001, não totalmente esvaziada, e o possível estouro da bolha imobiliária, o campo se estreita para o crescimento de outras. Outros, porém, acham que o capitalismo está sendo impulsionado por fenômenos que apontam para um novo paradigma, também ouvimos essa conversa antes do desastre das bolsas.

A expansão desse fenômeno parece ser a tendência, acompanhado de um certo “efeito sanfona” na economia de bolhas, ou seja, quando uma esvazia surge outra de maior amplitude em um tempo mais curto, gerando demandas, mas prometendo no seu ocaso um estrago maior do que sua predecessora. O que alguns analistas não conseguem enxergar, por se ocuparem com mundo da aparência, é que, o que chega a superfície são manifestações da crise da valorização do capital, da “alma que move a produção capitalista” (Marx).
04.07.2005

quinta-feira, junho 22, 2006

Um Zumbi assombra o mundo

Rall



O mundo volta a sorrir. A economia dá sinais de crescimento consistente. O emprego, após três anos em baixa, começa reagir na locomotiva do mundo. Os analistas econômicos andam ocupados, explicando para mídia, que a recessão acabou. Mas alguma coisa não bate com a alegre aparição desses simpáticos senhores na tele de notícias. As bolsas de valores, que deveriam acompanhar esse movimento ascendente da economia mundial, sinalizam um movimento em sentido contrário, principalmente no terceiro mundo. O risco país dispara e na cor rosada das gordas bochechas dos analistas, já dá para ver alguma palidez.

A primeira vista não deixa de ser estranho em plena retomada econômica o “humor do mercado”. Mercado aonde não se busca mais produtos para satisfazer necessidades, mas acumulam-se e vendem-se papéis de variados formatos e valores. Os sinais, cada vez mais fortes, de que os juros nos EEUU vão subir abala a credibilidade dos retardatários. O capital, que vinha abundantemente se oferecendo ao mundo dos pobres, volta rapidamente ao seu porto seguro de suposto risco zero. A bolha financeira, expandida ao máximo, ameaça um brusco movimento de contração em direção ao centro.

Vamos analisar mais de perto o que vem acontecendo. Todos devem lembrar os estouro da bolha, há três anos atrás, que atingiu em cheio as bolsas da Europa e principalmente dos Estados Unidos, levando consigo a chamada “new economy” do ponto.com que se dizia dotada de novos paradigmas de crescimento sem crise. Declarando-se preocupado com a recessão, as primeiras medidas do governo Bush foi distribuir fartamente dólares, através de cortes generosos de impostos, beneficiando principalmente os mais ricos. Por outro lado reduziu os juros à quase zero e pôs em movimento o complexo industrial-militar para produzir bombas e outros artefatos, ao declarar guerra ao Iraque.

O resultado disso foi que parte do capital financeiro, acomodado aos papéis do governo americano, ao ser mal remunerado pelos baixos juros resolve dar uma volta ao mundo. É o chamado excesso de liquidez que aporta nas bolsas do terceiro mundo e as fazem subir de forma avassaladora, sem que a economia desse qualquer sinal de geração de riqueza. Um dos exemplos é o Brasil: apesar do crescimento negativo, a bolsa subiu 97% em 2003. Os títulos do governo, antes desvalorizados, também tiveram o seu momento de glória.

Para que o capital se movimente mais à vontade, alguns indicadores foram criados pelos fundos de investimentos como pista para os investidores. Um deles é o chamado risco-país. Quando desce é a hora do assalto. Quando sobe é melhor sair de baixo. O momento é de subida do risco-país no terceiro mundo que ao se antecipar ao anunciado aumento dos juros pelo Fed, sinaliza para que deixem o barco. Mas será que todos conseguem se salvar do naufrágio? Nesse jogo se há ganhadores há também os perdedores. Os últimos geralmente são o capital nativo e o médio e pequeno que não dispondo dos mesmos recursos dos mega-investidores chegam atrasados nos botes salva-vidas. Esses capitais quando saem, geralmente deixam no rastro, um chão árido e um gosto amargo na boca dos perdedores.

O aumento dos juros pelo Fed é uma certeza, a única dúvida quando ocorrerá. Os déficits comerciais e orçamentários dos EEUU devem ultrapassar um trilhão de dólares este ano de 2004. O governo americano precisa desesperadamente de recursos financeiros para fechar suas contas e a melhor forma para tê-los de volta é remunerá-los melhor. Porém, era de se esperar que as bolsas dos assim chamados países desenvolvidos, com o aquecimento da economia mundial, mantivesse seu vigor. Não é o que estamos vendo. Parece que o estouro da bolha, que teve início no segundo semestre de 2000, foi interrompida no início de 2003, com as medidas tomadas pelo governo americano que despejou no mercado uma enorme quantidade de dinheiro. Esse capital, não tendo como se reproduzir, parte vai para o consumo, gerando no mercado imobiliário mais uma bolha e outra vai para especulação nas bolsas já que os papéis americanos, com os juros baixos, não são atrativos.

O indicativo de que a bolha financeira retomou sua expansão nas bolsas americanas é que a relação entre preços e lucros (relação P/L) das ações negociadas atualmente está bem acima da média histórica, situação muito semelhante aos primeiros meses do ano 2000 quando o capital fictício atingiu o topo e logo em seguida as bolsas começaram a despencar. O aumento dos juros e a corrida do capital para se abrigar nos papéis americano, depois de se expandir artificialmente em outros mercados, pode ser o gatilho para um novo estouro das bolhas nos países “desenvolvidos” e em “desenvolvimento”, o que pode mergulhar o mundo numa crise sem precedente.

E o crescimento da economia americana? Cabe aqui analisar se esse crescimento é sustentável, como defende os arautos do capital. Como já foi dito: a farta distribuição de dólares com os cortes nos impostos e juros subsidiados soprando as bolhas, algum impacto causaria no consumo. O movimento da colossal máquina militar americana com a guerra no Afeganistão e no Iraque tem intensificado as atividades da indústria bélica como há muito não se via. Parte significativa do crescimento do PIB como também a geração de empregos deveu-se ao esforço de guerra. Se por um lado isso mobiliza a economia é bom lembrar que armas, bombas, equipamentos militares de um modo geral e homens para manuseá-los, destruí-los e serem destruídos, se na indústria bélica aparece como produção para o governo são contabilizados como custos. E custos que aumenta ainda mais o déficit orçamentário que por sua vez exige recursos de algum lugar para cobrir o rombo.

O desequilíbrio nas contas americanas, sem solução a vista mesmo com a redução do valor do dólar em relação às moedas européias e japonesas, pode trazer inflação, pressionando mais ainda os juros. O câmbio flutuante, ao beneficiar os produtos americanos no mercado mundial, tem acirrado a concorrência e impulsionado a produtividade com incorporação de novas tecnologias e a destruição de postos de trabalho. Na esperança de que a grande locomotiva não pare e continue puxando o resto do mundo, muitos países são obrigados pagarem às contas do déficit americano.

Qual a repercussão no Brasil, com contas a pagar em dólar, que vai dos royalties aos serviços da dívida externa e uma boa parte da dívida interna indexada à moeda norte-americana, crucial para garantir a entrada de novos capitais? Apesar da melhora da situação da balança comercial, que passou a ser superavitária, a dependência do Brasil desses capitais é enorme. Com a bolsa em baixa e os investimentos produtivos vacilantes, a única forma de garantir o fluxo de capital de curto prazo é manter os juros nas alturas. O investidor externo, de olho no risco-país, exigem juros proporcionais. Portanto, a crise na bolsa, pode interromper o tímido declínio que vinha sendo observado nos patamares astronômicos dos juros, com repercussões na combalida atividade econômica.

O discurso de setores da esquerda de não pagamento da dívida externa, apesar de correto, erra no seu objetivo ao acreditar que o dinheiro destinado à amortização e aos juros poderia ser investido internamente, garantindo crescimento econômico e melhoras sociais. Uma reivindicação como essa só poderia ter alguma envergadura se envolvesse todos os países endividados. Medidas isoladas ou meias medidas, despertaria a fúria do capital global e faria o país descer pelo ralo. Segundo, o não pagamento da dívida não seria a garantia de um surto de crescimento econômico e criação de empregos. Poderia sobrar alguns trocados para o execrável fome zero. Mas, o mais provável seria um aprofundamento da crise do capitalismo, exigindo novas saídas.

Hoje o mundo é totalmente dependente do capital internacionalizado para qualquer investimento. O chamado capital nacional é uma ficção. O problema é que o capital não tem mais como se reproduzir na economia “real”. Seu destino é girar em falso, sem rumo como um zumbi, produzindo bolhas financeiras aqui e acolá, simulando acumulação. É a forma que encontrou de se manter morto-vivo na sociedade do trabalho em crise.



08.05.2004

sexta-feira, junho 16, 2006

Furedi e a rebelião dos jovens na França

Rall
Quem não leu o artigo, "Todos devíamos aprender com a França", de Frank Furedi, publicado na Folha de 13.11.05, deveria fazê-lo. Apesar de um certo saudosismo gaullista e clamar por novas idéias na política, ao mesmo tempo em que reconhece a falência da mesma, Frank Furedi levanta questões que se para alguns não é novidade, tem um peso diferente na mídia quando escrito por um analista "insuspeito". Sem querer polemizar com aquilo que o surpreende, Furedi começa mostrando a falência da política de assimilação na França e do multiculturalismo ao analisar a experiência inglesa. Aponta a possibilidade de levantes semelhantes aos dos subúrbios franceses em outros países europeus, onde as tensões se acumulam nos bairros periféricos, cada vez mais distanciados das áreas de "excelência" do primeiro mundo e mais próximo das favelas do terceiro. A apartheid social se alarga nos países ricos e pobres, a repressão aumenta enchendo as prisões, e a tão em moda política da inclusão se mostra vazia.

Apesar de reconhecer o esgotamento das elites e dos partidos políticos, Furedi parece desejar um poder com metas claras dirigido por essas elites que critica. Estranha a falta de objetividade da política, mas esquece que a não objetividade como a falta de metas é o reflexo de uma crise mais profunda, que já não deixa margens para iniciativas capazes de supera-la nos limites dados pela atual sociedade. Eis a razão da exaustão da política partidária e do Estado na França e no resto do mundo. Reconhece acertadamente que a "marginalização do movimento sindical tem seu paralelo no declínio da coerência no interior da elite francesa", afirmação que pode ser generalizada para as elites e movimento sindical dos demais países. Fica, no entanto, no meio do caminho e prisioneiro das políticas passadas; não consegue aprofundar crítica à sociedade em crise. Acho que esse mal acomete a maioria de nossa esquerda, principalmente aqueles que vêem na militância partidária e na chegada ao governo, a via possível das mudanças. Sem referências, tentam se agarrar à política de classes, que hoje "existe apenas em forma populista e caricaturada", como muito bem reconhece Furedi. Porém, isso não é o fim da história como muitos aclamam, é preciso descobrir novas categorias que supere o conceito marxista de classe do antigo movimento operário. Talvez, o que vem se passando nas ruas das grandes cidades, principalmente nos bairros pobres, cada vez mais descolados da produção de mercadorias, seja a expressão de algo novo.

A sociedade burguesa hoje se depara com o crescimento crônico do que poderíamos ainda chamar de exército industrial de reserva, fenômeno que antes se exacerbava nas crises, mas que voltava ao tolerável nos momentos de bonança. Furedi, como tantos outros, parece não enxerga que com as novas tecnologias dispensadoras da força de trabalho, a tendência é o crescimento sem limite deste exército. Muitos nem se quer conseguem ser socializados para produção capitalista, são recrutados sem essa premissa. O capitalismo hoje, na produção da miséria, já não gera mais proletários, mas o seus eternos reservas, cujas fileiras que dão volta ao mundo são formadas não só de imigrantes como quer dá entender a grande imprensa tentando restringir a crise. Daí o deslocamento do campo de batalha das fábricas para as ruas. Os "arruaceiros" de hoje nada tem a vê com os "arruaceiros" de ontem, estes bem comportados senhores preocupados em não serem mandado para reserva nos próximos cortes.

Da jovem rebelião tem-se exigido objetivos claros, propositalmente esquecem o seu lado certeiro que é, na luta de rua, a solidariedade e a crítica radical à mercadoria e suas formas hierárquicas, mesmo que num primeiro momento não se expresse conscientemente. Isso, porém, não é a garantia de que movimentos como este não seja absorvido pelo sistema que sabe muito bem exorcizar os seus fetiches nas horas de aperto. Como a sublevação dos pobres da periferia ainda carrega um certo desespero daqueles que no mercado não consegue trocar a força de trabalho por outras mercadorias necessárias à subsistência, pode se tornar presa fácil das manipulações dos administradores da crise.

Na sociedade produtora de mercadorias em que a acumulação deu lugar à simulação, onde as bolhas crescem e estouram em velocidade estonteante, a política não podia ser diferente: prisioneira dessa realidade, degringola e perde a identidade não por falta de missão, mas por sofrer os abalos da economia mundial que não se deixa governar e não respeita fronteiras em sua ação destruidora. As instituições nacionais já não respondem a esse novo momento do capitalismo global. Como reflexo dessa realidade e para esconder fragilidade em que se sustentam, a política e o poder local tende a ser cada vez mais espetacular.
23.11.2005

quarta-feira, junho 14, 2006

A economia e seus paradoxos

Rall
O paradoxo de uma economia que cresce gerando miséria
A economia de países “subdesenvolvidos”, onde muitos produtos industrializados ainda não fazem parte dos meios de subsistência dos trabalhadores, tende a satisfaze-los com baixos salários.

À medida que a industrialização avança, novos produtos de consumo de massa lançados no mercado incorporam-se aos meios de subsistência forçando aumentos salariais. É claro que as variações para cima ou para baixo dos salários necessários para aquisição de mercadorias para manutenção dos trabalhadores e suas famílias, depende ainda do exército industrial de reserva, do grau de organização desses e da repressão patronal e policial a que estão sujeitos. Mas para o bem do capital, apesar do mórbido desejo, o trabalhador não pode morrer de fome, pois não haveria produção de mais-valia e o próprio capital para se realizar necessita vê as mercadorias consumidas.

Essa variação no tempo e no espaço de como se compõe os meios de subsistência dos trabalhadores tende a explicar as enormes disparidades salariais entre países e entre regiões de um mesmo país. Não estamos falando de diferenças individuais determinadas pelo trabalho qualificado. As formas como são satisfeitas as necessidades da população nas várias regiões pode ser uma das explicações para mobilidade do capital industrial: na busca incessante da valorização do valor, procura estabelecer-se, sempre provisoriamente, nos países onde os meios de subsistência necessários sejam mínimos e, se possível, onde o disciplinamento do trabalho humano abstrato tenha sido completado. Não é à toa a preferência pelos países antes ditos socialistas, onde as normas do trabalho assimiladas a manu militari, por mais brutais que sejam, são aceitas passivamente. Pouco conta o mercado interno dos países onde se instalam esse capital industrial itinerante - e o peso dos recursos naturais é relativo -, mais sim o rico mercado dos países “desenvolvidos” que é de fato o destino de seus produtos.

O barateamento das mercadorias aí produzidas, numa combinação de mais-valia relativa e absoluta, tende baixar o preço da “cesta básica” dos países do centro, consumidores desses produtos, permitindo um movimento aparentemente paradoxal de redução da massa salarial sem num primeiro momento reduzir o consumo. Por outro lado, observa-se nos países “subdesenvolvidos” que recebem investimentos estrangeiros na produção, que apesar dos indicadores positivos da economia, a estagnação ou até mesmo a redução do consumo de produtos tidos como essenciais é uma realidade. Recentemente foi publicada no Brasil, uma pesquisa que mostra que o consumo de gás de cozinha em 2005 retrocedeu aos níveis de 1997. Mesmo considerando outras variáveis é um consistente indicador da regressão das condições sócio-econômica da população apesar do tão festejado crescimento do PIB.

Um outro fenômeno é observado nos países ricos: apesar de inundados por mercadorias baratas vindas da periferia do capitalismo, a cada ano mais gente cai abaixo da linha de pobreza. Dados recentes do governo dos EUA expõe uma situação há muito escondida: paralelamente ao crescimento exuberante da economia, o número de americano que tem decaído abaixo dessa linha vem aumentando. A última pesquisa publicada falava em um milhão e trezentos mil só esse ano. O furacão Katrina mostrou que o sonho americano não é para todos.

A economia americana, que puxa as demais, move-se às custas de uma enorme bolha imobiliária e financeira que aumenta artificialmente o consumo das camadas privilegiadas, compensando a ausência daqueles que se descolaram do mercado cuspidos pela automação da produção. Fenômeno antes tido como marginal no capitalismo, a geração de capital fictício é defendida como fundamental para manter o crescimento econômico. A ajuda dada pelos bancos centrais desses países na formação das bolhas evidencia bem isso.

O que não se tem considerado é que a história mostra que as bolhas, como fraude da acumulação do capital, não inflam ao infinito. Ao chegarem ao limite de sua elasticidade explodem causando danos irreversíveis, proporcionais ao seu tamanho. De uma certa formas a tese das bolhas necessárias é um reconhecimento invertido da crise da valorização do valor.

30.09.2005

terça-feira, junho 13, 2006

Da doce ilusão à consentida mentira

Rall



Edgar Morin, em seu livro "Para Sair do Século XX", faz uma interessante análise do componente alucinatório da percepção. Mostrar que apesar de o pensamento mágico ser resultado de um fator "irracional", ele é determinado, na maioria das vezes, por um princípio de racionalidade. Experimentos recentes nas áreas de neurologia e psicologia evidenciam que nossa percepção das coisas e dos fenômenos não está relacionada só com o que o é captado pela retina, mais, também, com o que está acumulado, guardado no subconsciente ou mesmo no inconsciente, fruto de experiências e percepções passadas. Ou seja, o que devolvemos como sendo a visão de um objeto ou situação, não é determinado só pelo que vemos, mas por todo um complexo intrínseco ao funcionamento de nossa memória, de nosso cérebro. Não é à toa que resistimos ao novo, quando se choca com conceitos internalizados que estruturam nossa visão de mundo.
*
Recentemente, conversando com um militante do PT, abalado com os escândalos no Governo Federal, dizia que tudo era montado para desestabilizar o governo e o Partido frente às eleições municipais. É evidente que em situações como essas os partidos de oposição tendem a tirar proveito. Mas o que meu amigo não entendia em sua preleção moralista e negadora dos fatos é que tais escândalos fazem parte do poder e dos caminhos para alcançá-lo. Quem aceita sentar no trono, acata essa lógica antes de chegar lá, por mais radical que seja os discursos de campanha. Quais partidos políticos chegariam ao governo sem se submeter a tais falcatruas? Simplesmente não chegariam. Essa visão ingênua não é diferente do cômodo discurso de alguns intelectuais que, enclaustrados em suas cátedras, olham "surpresos" os rumos das políticas do governo. Acham que o PT resistindo (raciocínio que não se aplica a atual conjuntura), mudaria o curso do rio caudaloso, que só corre numa direção, e não seria tragado pelo redemoinho do poder estabelecido.
*
A visão alheia de meu amigo, a mesma da chamada base do partido, é reforçada pela direção (que tinha tudo muito claro ou não chegaria ao poder), com uma blindagem ideológica. Isso nos remete a discussão das instituições na sociedade capitalista. Nos interessa aqui, enquanto instituições da ordem social existente (pois não existe outra), os partidos políticos que se organizam e funcionam nos moldes empresariais. Na tão decantada democracia interna dos partidos de esquerda, forma inerente ao capitalismo, a alienação é reforçada pelo chamado centralismo democrático. Todas as discussões são afuniladas e manobradas para reforçar o poder institucional que flutua com autonomia, descolado e hostil à militância, apesar de legitimado por esta. Quem de fato representa a instituição "partido" é a direção. A energia do trabalho da chamada base é apropriada e direcionada no sentido que lhe convém. Aqueles que se rebelam são excluídos de forma impessoal pela democracia partidária, como são excluídos os que não servem ao mercado, pois, com sua rebeldia, não contribuem para o "acúmulo de forças" que beneficia a cúpula. Como essas organizações não possuem a materialidade da mercadoria, o fetiche se expressa, na sua forma extrema e mítica ao mesmo tempo, nos corpos endeusados dos chefes supremos.
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O termo "acumulação de forças" usado com tanta convicção pela esquerda na luta política é uma forma diferente de dizer "trabalho acumulado", ou seja, capital. O trabalho abstrato, é, também, o responsável pela construção e consolidação das instituições que dão sustentação ideológica à sociedade do trabalho. Na crise do valor, essas instituições, em particular os partidos políticos, como a economia de bolhas financeiras, vivem da simulação. Quando governo, nada podem fazer, a não ser administrar a crise. E aí equivocam-se à esquerda do PT e outros grupos aliados que com um discurso aparentemente diferente, propõem mudanças nas políticas econômicas e sociais. No momento em que o trabalho em crise não conta mais na acumulação de capital, insistem na idéia de uma política desenvolvimentista, criadora de trabalho produtivo, cujos primeiros estertores já eram ouvidos na segunda metade dos anos 70.
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Para "vencer" essas dificuldades, os partidos no poder, como autodefesa, tendem a se burocratizar, a se fechar e a centralizar mais ainda as decisões, relegando a militância, muitas vezes calada com cargos no aparato estatal. A alucinação dos tempos em que se acreditava religiosamente na emancipação por essas vias, cede lugar à mentira que passa ser uma necessidade à sobrevivência política. Na encenação, a realização da mentira, não importa quem suba ao palco.

31.03.2004

UMA BREVE HISTÓRIA DA EXPULSÃO DO HOMEM DO CAMPO PELO CAPITAL

Rall


A monocultura dirigida para a exportação é um fenômeno antigo em nossa história. Mas a modernização da produção, com o estabelecimento de novas relações no campo e a introdução de tecnologias dispensadoras do trabalho, intensifica-se a partir dos anos sessenta. A estrutura paternalista da antiga propriedade rural, onde residia um grande número de famílias, morando ali há décadas, começa a desagregar-se neste período. No Nordeste, onde vivenciei esta realidade, o impulso das modernas usinas de açúcar vai gradativamente transformando os velhos engenhos produtores de rapadura, açúcar mascavo e pinga em fornecedores de cana-de-açúcar. Esses engenhos, geralmente seculares, antes das usinas e das modernas máquinas agrícolas, dependiam para o seu funcionamento de um grande número de moradores, que ali formavam verdadeiras comunidades. Dispunham de um pedaço de terra para o seu roçado e pagavam por isso, com dois ou três dias de serviço ao dono da terra. Trabalhavam como "parceiros".

As usinas que surgiram no início do século passado, a partir dos poucos engenhos modernizados, como ainda não possuíam grandes extensões de terras, negociavam em condições vantajosas o fornecimento de cana-de-açúcar com os proprietários desses antigos estabelecimentos. Fechar o engenho pouco produtivo, para ser fornecedor das usinas, era considerado "um bom negócio". E de fato, foi o que aconteceu: pouco a pouco foram ficando de "fogo morto". As parcerias começaram a se desfazer e o trabalho assalariado, antes limitado a algumas funções específicas, surge com força total. Com as roças invadidas pela cana, aos moradores só restavam duas alternativas para não morrerem de fome: ou vão embora puxando a cachorrinha, como assim gostavam de dizer seus detratores, ou se vendiam como assalariados mal remunerados. Esse processo, que se intensifica nos anos cinqüenta, envolvendo outras propriedades e não só os velhos bangüês, tem grande impulso nas décadas de sessenta e setenta. Acompanhando essas mudanças, consolidam-se os chamados barracões, comércio de produtos básicos, gerenciado por alguém da família dos engenhos ou de outras fazendas produtoras de cana-de-açúcar.

Com a crise do petróleo dos anos setenta e o surgimento do proálcool com grandes incentivos governamentais, plantar cana era rentável mesmo em terras pouco produtivas. Nos anos sessenta é introduzido uma variedade de cana para o plantio em tabuleiros, regiões planas e altas, situadas nos limites da mata atlântica, com pouca água mas apropriada à mecanização. Terras antes pouco valorizadas, eram ocupadas por pequenos agricultores que praticavam a agricultura familiar de subsistência. Produziam para o consumo e o que sobrava era vendido em feiras livres ou trocado por outros produtos. No final dos anos sessenta e na década de setenta, com a possibilidade de essas terras serem utilizadas para o cultivo de cana, começam a ser compradas pelas usinas e grandes proprietários a preço de quase nada. Muito ajudou, nesse processo, a propaganda enganosa que o governo fazia das cadernetas de poupança e os financiamentos a juros negativos bancados para beneficiar os grandes proprietários. Os pequenos agricultores, onde muito pouco circulava dinheiro, achavam estar vendendo suas propriedades por uma fortuna. Depois de realizada a transação, geralmente compravam uma casa na cidade; o dinheiro que restava punham na poupança acreditando na multiplicação dos pães. No entanto, a inflação e as necessidades pessoais em poucos anos acabavam com o sonho de uma vida na sombra e água fresca, como queriam crer. Agora, só restando para aquisição dos produtos vitais à sua sobrevivência a força-de-trabalho, iam ao mercado oferecê-la àqueles que lhes usurparam as terras. Viravam assalariados ou eram obrigados a venderem as casas, pôr os bagulhos que restavam nas costas e seguir em frente para uma cidade maior onde já se encontrava um parente ou um conhecido.

E os nossos moradores das grandes propriedades? Bom, esses escravizados pelo trabalho e pelo barracão tinham dificuldade em se movimentar. Nos pagamentos aos trabalhadores nas usinas e fazendas produtoras de cana-de-açúcar, sempre presente estava o dono do barracão, que de prontidão arrancava uma boa parte ou o salário inteiro do infeliz. Deixá-los devedores e sem salários era uma fórmula eficaz que garantia novas compras no barracão e sua permanência escrava na fazenda de cana. Porém, um elemento novo perturbou a ordem das coisas. Depois de 64 os direitos trabalhistas e previdenciários foram estendidos ao campo. Querendo a simpatia dessa massa desprovida, os militares golpistas até exigiam o cumprimento desses direitos. A justiça do trabalho passou a ser um instrumento de pressão para a aplicação da legislação. Apesar da extrema violência no campo, algumas ações trabalhistas ganhas por antigos moradores assombram usineiros e fazendeiros. Histórias sobre venda de parte das terras para pagar essas ações se disseminam mais rápido do que o pó dos canaviais em chamas. "Tudo menos perder patrimônio tão arduamente acumulado para essa gente! Já invadimos suas roças agora vamos destruir suas casas!", decidem. E assim fizeram. Começaram a expulsar os moradores e derrubar as casas. Braços para lavoura?, foram buscar nas cidades e pequenos povoados. Surge daí os agenciadores de mão-de-obra, que compram e vendem trabalho, os famosos gatos.

Esses fatos, a expropriação pelo capital da pequena propriedade e sua concentração nas mãos de poucos, e a expulsão de antigos moradores das grandes propriedades, empurraram mais gente do campo para a cidade no Nordeste do que qualquer fenômeno natural como a seca ou mesmo a atração exercida pelos pólos dinâmicos da economia. Processo agravado com a intensificação do uso de novas tecnologias no campo dispensadoras do trabalho. A contribuição da inflação em alta, ao ser a terra utilizada como ativos pelos detentores do capital, uns na tentativa de preservar a riqueza acumulada, outros para especular e ganhar fortunas, não pode ser desprezada. A fome de álcool dos automóveis ampliou o desastre humano e ecológico, ao aumentar o número de destilarias. A monocultura da cana, que se estende das terras baixas e férteis aos tabuleiros secos e arenosos corrigidos com toneladas de adubo, avança e destrói rapidamente o que restava de mata atlântica. Com suas máquinas modernas e sem a inconveniência do trabalhador fixado à terra, estavam livres para pilhar o planeta. Mas, mais recentemente, o fracasso do proálcool, as oscilações do mercado externo do açúcar e o fim de alguns subsídios aos usineiros que não conseguiam competir com a produtividade das usinas paulistas levaram à falência dezenas de usinas e destilarias nordestinas, num novo capítulo dessa história de concentração de riquezas e movimentação de pessoas. Hoje, nas paisagens áridas da natureza inexoravelmente destruída ecoa o lamento dos perdedores.

05.03.2003

segunda-feira, junho 12, 2006

A louca corrida do morto insepulto Nosferatu

Rall


Era previsível. Bastou uma pequena mudança no último comunicado do Fed - foi retirada a informação de que a taxa de juro deve permanecer estável por um período considerável - para deixar os mercados dos chamados países emergentes em pânico. A bolsa caiu no mundo todo. No Brasil, quinta-feira dia 29, caiu mais de 6%, o risco Brasil subiu 9% e o dólar fechou em alta. Parece que Nosferatu prepara-se para alçar vôo. A piscadela da maior economia do mundo já o deixou assanhado, apesar do esforço dos enganadores de plantão de que tudo está muito bem.

É interessante como esse imenso volume de capital financeiro, que não consegue mais se reproduzir com trabalho vivo, circula no mundo sem rumo. Ontem nos países centrais, hoje nos emergentes, depois em qualquer outro lugar que lhe possa oferecer alguma vantagem mesmo que ilusória. Formam-se e explodem bolhas financeiras como se fosse balão de festa. Parece que o tempo das bolhas encurta-se perigosamente. Mal saímos de uma nos países desenvolvidos, formou-se outra nos emergentes com o que restou desse capital, e já se anuncia o fim da farra. Cada estouro, deixa um rastro de destruição e miséria que só tende aumentar. O ímpeto destrutivo do capital nunca se mostrou tão exacerbado.

Nessa louca corrida do morto Nosferatu em busca de sangue fresco para se reconstituir, quem primeiro paga a conta são os mais fracos: no mundo, os países emergentes são sempre a bola da vez. A fixação obsessiva dos governantes em criar emprego para alimentar o monstro revela seus resultados no expressivo número de carrocinhas de tração humana, circulando nas cidades, em busca de lixo cujo preço do quilo nas usinas de reciclagem despencou em 50%; é a concorrência saudável, dirão os guardiões do mercado. Mas isso não satisfaz o apetite refinado de Nosferatu. Assim, prefere continuar errante. Estourando aqui, crescendo acolá com milhões de operações fictícias entre elas os juros das dívidas dos Estados que crescem exponencialmente, gerando no seu imaginário doentio, riqueza sem substância. Um dia, a explosão final desse corpo inflado, há de exalar pelos corredores do poder o cheiro putrefato das suas indigestões.


01.02.2004

Breves reflexões sobre teoria e práxis

Rall


As dificuldades teóricas estão por toda parte.Uma delas é sobre a relação dolorida entre teoria e práxis. Entendo que na sociedade em que vivemos é muito difícil a “articulação” desses campos. Sempre vamos ter os teóricos puros e aqueles que, em sua prática social, irão aceitar ou descartar essa ou aquela teoria. Acho, porém, que o teórico puro, apesar do distanciamento necessário, devem estar munidos dos melhores instrumentos capazes ampliar a visão que se tem da realidade, podendo detectar o ainda invisível para os movimentos sociais, muitas vezes movidos só pelo senso comum. É muito difícil para quem estar diretamente envolvido nos movimentos, mesmo detendo alguma clareza teórica, destrinchar suas possibilidades: quando “massa” perdemos a nossa individualidade. É como se constituíssemos um superego coletivo que não sendo a somas dos eus presentes, arrasta o movimento social em determinadas direções. Não estou falando de uma simples assembléia ou coisa semelhantes, mas em movimentos que são capazes de mudar a realidade.

O problema é o sentido dessa mudança, e aí entra os teóricos. A história coloca para os movimentos sociais, acredito, um leque de opções diferente em cada momento. Podem ser empurrados para caminhos diversos, inclusive contrário as suas palavras de ordem e objetivos iniciais. Estes possíveis caminhos produzem o debate teórico. Já se dizia que não existe revolução sem teoria revolucionária. Em outras palavras, o movimento social deve ser municiado de alguma forma por teorias que não se geram espontaneamente em seu seio, mas são por ele alimentadas. Se acatarmos a relevância do teórico puro, temos que concordar com essa premissa. Isso pode nos causar um certo arrepio, porém, é bom lembrar, que elaborações teóricas que se prezem como teoria crítica é fruto do desbravamento do seu objeto de estudo e da ação deste sobre seu observador. O teórico puro, portanto, apesar do distanciamento necessário ao focar suas lentes de aumento no movimento social e de estar atento ao significado das teorias que deseja criticar ao observar fatos novos, não é um observador isento.

Mediando a relação entre a teoria na sua forma mais acabada e o movimento social, estão os militantes que ao se apropriarem dessa teoria vão estar numa relação tensa com as pulsões do movimento. Em certos momentos a teoria facilita sua ação, em outros é descartada pela dinâmica do movimento como um casaco puído que já não esquenta mais. É nesse processo contraditório, não linear e rico, mas lento para nossa existência, que o movimento social, em um certo ponto, toma consciência, concentra todas as suas possibilidades e faz a história acontecer. O movimento social, suas lideranças bem como os indivíduos que nele envolvidos buscam nas ações a “veracidade” dos conceitos teóricos, estão sempre colocando novas questões nem sempre respondidas pelas teorias: a realidade estará a exigir sua negação. A teoria quando congelada é ideologia, representação grotesca do real. Assim era marxismo oficial dos países antes chamados socialistas e os dogmas que orientam a ação de alguns grupos atuais. O movimento social, cuja pureza é uma abstração ingênua, não está imune a tais riscos.

28.01.2004

sábado, junho 10, 2006

O VENERADO DEUS-TRABALHO

Rall


Folha de São Paulo de 18 de janeiro passado traz uma matéria interessante sobre a modernização tecnológica da economia Brasileira entre 1990 e 2001. Foram eliminados 10,76 milhões de emprego segundo pesquisa realizada pela UFRJ. O coordenador do estudo, David Kupfer diz que o "desafio do país é continuar com o seu processo de modernização, necessário para competir aqui e lá fora, e criar vagas".

Uma outra matéria, em edição anterior, mostra a decepção dos analistas econômico pela pífia criação de novos empregos, 1.500 vagas, nos EEUU nos mês de dezembro, apesar da taxa de crescimento anualizado no último trimestre de 2003 está acima de 8%. Esperava-se a criação de 150 a 200 mil novas vagas com o crescimento econômico. E o pior: apesar do crescimento, a indústria nesse mês fechou 60 mil vagas. Voltou-se a falar na imprensa americana em crescimento econômico sem criação de empregos.

Apesar da distância, as duas matérias se completam. A matéria sobre a economia americana mostra que a cada crise, acirra-se a concorrência e investe-se pesado em tecnologias dispensadoras de trabalho. Num primeiro momento, o impacto é tamanho na produtividade que surpreende políticos e especialistas no que diz respeito à criação de novos empregos. As outras economias, obedecendo à força cega da concorrência, mais tarde ou mais cedo reagem de forma semelhante se não quiser sucumbir.

E qual é o resultado dessas mudanças, na maior economia do mundo, junto aos países emergentes, inclusive o Brasil? Provavelmente uma onda de produtos mais barato vai inundar o planeta e, muitas das indústrias, pelo atraso tecnológico, não suportarão a concorrência e vergarão. São as importações que eliminam empregos. Outras, mais bem posicionadas no mercado, investirão pesado em tecnologia fechando postos de trabalho.

Contrariando a demagogia nacionalista, os dados da Folha mostram que a grande destruidora de vagas para o trabalho vivo são as mudanças tecnológicas e não a abertura às importações: 10.763.212 empregos eliminados pela primeira contra 1.548.532 empregos pela segunda. Em países como o nosso, por ter "fechado" sua economia durante algum tempo, o impacto da modernização tem sido bem mais dramático. Os 20% de desempregados na Grande São Paulo mostra isso com muita clareza. A indústria automobilística é quem mais evidenciou este fenômeno, quando sobre a pressão do mercado, foi obrigada a deixar de lado as carroças para fabricar carros mundiais.

O grande paradoxo do capitalismo em sua fase atual é que esse enorme e crescente potencial produtivo tanto gera riqueza em proporções jamais visto, quanto uma onda gigantesca de um mar de miséria de destituídos que se esparrama por todo planeta. Apesar da exclusão ser intrínseca a lógica da sociedade produtora de mercadoria, inclusive nas instituições que dizem lutar pela eqüidade, criou-se na esquerda a ilusão redistributiva. É comum ouvir da boca dos mais esquerdistas o discurso da "democratização do capital" (o que é isso?), redistribuição de renda e outras lorotas impossíveis nos dias atuais.

Quanto à fala do Sr. David Kupfer citada acima, gostaria de fazer uma breve observação: quando ele coloca como desafio das políticas de governo a geração de emprego, expressa a posição comum dos políticos: quanto mais se agrava a crise do trabalho mais aumentam aos milhões suas cotas ilusórias de novos empregos para depois das eleições. Nesse nosso abençoado Brasil todas as velas têm sido acesas ao venerado Deus-trabalho, esperando-se que se opere um milagre.

21.01.2004

sexta-feira, junho 09, 2006

Ainda sobre o Nosferatu

Rall



Parece que soou o alarme: o vice-presidente do Citigroup, William Rhodes, diz que a euforia atual dos investidores com os “emergentes” lembra os meses que antecederam a crise asiática, que começou em 1997 e se alastrou para países como a Rússia e o Brasil. “Há um risco hoje de que os mercados talvez estejam indo longe de mais em relação aos fundamentos econômicos (dos emergentes, claro)”, diz Rhodes (Folha de São Paulo, 16 de janeiro de 2004).

O apelo para que o Nosferatu volte ao ninho, veio mais sedo apesar do otimismo dos analistas de plantão. Não houve se quer a necessidade de um aumento dos juros ou uma pequena melhoria no rendimento dos papéis do governo americano. A campanha para o retorno de seu corpo virtual, desmembrado mais crescido, já começou e com peso. É como se dissessem: “volte agora enquanto a exuberância de seu ser não foi ainda vazada pela estaca do real. Deixe que eles, os filhos dos ‘emergentes’, paguem a conta de sua destruição. Mais tarde podem querer dividir conosco o prejuízo”.

Acho que a irracionalidade de seus desejos, mesmo correndo risco, ainda espera que se complete a tremenda transferência de capital da chamada poupança nacional para os fundos de ações (sair agora quando o capital nativo começa a chegar?). Aí se fecha o ciclo e um Nosferatu balofo, bate as asas e segue impávido com algumas escoriações para o estouro final. Quanto tempo? Anos? Talvez. Ou meses?... E aqueles que contavam com o capital fictício para dá um empurrãozinho no “espetáculo de crescimento” podem se decepcionar, apesar da inexistência de outras opções no mundo da pós-modernidade.

18.01.2004

sexta-feira, junho 02, 2006

Nosferatu dos novos tempos

Rall


É meus amigos, parece que estão acreditando no milagre da multiplicação dos pães! Num mundo em crise o capital financeiro faz milagres. Agora é a nossa vez, os periféricos, as bolsas em alta fazem a alegria dos investidores. Vejam só, o Brasil que há anos não consegue acumular nem pra pagar a cachaça da turma, a economia cresceu 0,10% em 2003 segundo os analistas, puxa a euforia das bolsas do mundo com alta de 97,3%! Donde vem tanta riqueza? Do nada. Pura ficção de um capital enlouquecido que não consegue mais acumular: dinheiro gerando dinheiro sem substância.

O ano de 2003 foi à vez dos grandes investidores estrangeiros marcarem presença nas bolsas dos paises em “desenvolvimento”. Juros baixos nos países de origem, papéis americanos e de outras grandes economias com baixa rentabilidade. Vamos para o terceiro mundo! O sinal foi à queda do risco-país. No Brasil, de 2.436 pontos em 27 de setembro de 2002 foi para 428 no dia 05 de janeiro de 2003. Que maravilha! Tornamo-nos confiáveis como diz a grande imprensa, porém é bom acrescentar: graças às manobras especulativas.

Pelo riso do poder esse é o nosso ano. Produção? Emprego? Não tem importância, ponha as suas economias na sacola e joguem na bolsa. Vai crescer e frutificar. Só tem um risco: o bicho pode comer por dentro o miolo, deixando a casca para enganar e um caroço sem valor duro de roer. Depois sai voando por aí atrás de novas seivas. É insaciável.

O Nosferatu dos novos tempos já não se alimenta do trabalho vivo, que vem escasseando desde as últimas décadas do século passado. No seu delírio famélico prefere o sangue virgem da sua imaginação insânia, ou seja, o nada. Um dia, seu corpo putrefato, sob o efeito da estaca do real, expele gases maus cheirosos e murcha. Seus adoradores se desesperam frente ao que restou de um ser tão perfeito que parecia garantir a felicidade eterna. Imperceptível, sua alma doentia desloca-se numa velocidade estonteante. Mirando novos horizontes em busca de recompor seu corpo destruído, deixa para trás as ruínas de sua passagem.


07.01.2004

quinta-feira, junho 01, 2006

De um infeliz ano velho

Rall
Termina mais um ano. Como diz os analistas, foi o ano do governo arrumar a casa. E como diz o governo, com as reformas e as medidas econômicas, criamos as bases para o crescimento espetacular. De fato terminamos o ano com o desmanche do sistema previdenciário, com o desmonte das Universidades Públicas, ou o que ainda restava de público no ensino e com os Hospitais Públicos decidindo quem tem o direito de viver ou morrer. Mas todas essas medidas, que resultaram no encolhimento do estado, meus caros amigos, nada tem a ver com o que vocês costumam chamar de neoliberalismo. São medidas necessárias para acabar com o déficit público, pagar nossas dívidas interna e externa e liberar recursos para o mercado. Ah! É nele que está a nossa grande esperança! Será ele o grande responsável pelo espetáculo de crescimento, tão ansiosamente esperado...Vejam, estamos no fim do ano e a indústria já dá sinais de seu vigor, com o aumento das exportações criou 1.500 vagas, sim senhor, mil e quinhentas vagas para mais de dois milhões de desempregados nesta abençoada e Grande São Paulo. É a primeira cena do espetáculo, outras virão.
Reconhecemos que nossas exportações já bateram no topo nos mercados tradicionais. Não se incomode com isso, tem os emergentes, a China, a Índia, a grande Líbia do Coronel Kaddafi e a acolhedora Cuba do Comandante-em-Chefe Fidel Castro. Talvez para esses dois possamos aumentar as nossas exportações de sisal, ótimo para confecção de corda para enforcados. Com o aumento dos dissidentes abre-se um grande mercado para esse nobre produto em vários países amigos e já vai com cheiro de carne humana dos pedaços decepados dos membros superiores dos trabalhadores. Sai mais barato do que o uso de balas, com certeza. Na ponta de uma corda bem trançada pode passar vários pescoços. Só a China arranjou uma forma inteligente de resolver os custo das balas: manda a fatura para os familiares do morto. Mesmo assim, a forte e boa corda de sisal poderia ser mais barato se dividido os custos entre várias famílias. Quem sabe se os EEUU não vão querer algumas toneladas para o Iraque e Afeganistão? Tem muita gente por lá dando trabalho.
Gritam pela grande imprensa os analistas de plantão que o mercado interno puxa o nosso crescimento o ano que vem. Os juros estão caindo, a indústria pronta para investir, crédito barato, as reformas concluídas e o consumidor doido pra consumir. “Mas, espera! Os rendimentos dos trabalhadores não vêm caindo dramaticamente?” É, é o que diz o IBGE: a participação da renda dos trabalhadores no PIB vem caindo ao longo dos anos, despencou mais de 15% de maio de 2002 ao mesmo mês em 2003 e continua caindo, ainda por cima tem o persistente e teimoso desemprego... “A indústria em crescimento não absorve essa mão de obra?” Não tanto quanto querem, na verdade muito pouco apesar do alarido da imprensa. No pega pra capar da concorrência num mercado globalizado, nossos preços vão ser comparados com os de fora. Se nossa indústria for competitiva vai garantir os seus produtos no mercado, para isso deve aumentar a produtividade, com mais máquinas e menos trabalhadores, trabalhando muito e recebendo pouco. Já se fala até em crescimento sem emprego, pra quem vender não sabemos. “Mas e os milhões de empregos prometidos pelo Presidente no espetáculo de crescimento?” Bom, para os chamados excluídos se não tem emprego, tem a fome zero. “E se não tiver comida para todos?” Ah, meu caro! Tem a polícia, essa eficiente instituição! Vem se modernizado, ganhando força, veja as prisões como estão cheias! Já mata mais do que a polícia da ditadura, com uma vantagem: ninguém reclama, nem anistia, nem direitos humanos, nem igrejas, nada, tudo calado. Nessa história, de vez em quando vai um cidadão, mas é contabilizado como bandido e todos ficam satisfeitos.
MESMO ASSIM DESEJO A TODOS UM FELIZ ANO NOVO!...

21.12.2003

domingo, maio 28, 2006

Instituições do medo

Rall

A televisão brasileira, como tudo em nossa sociedade, está cada vez mais igual. Na busca de audiência, pois só com grandes audiências podem ter seu quinhão garantido pelo mercado, o vale tudo passou ser a regra. Descobriu-se que fazer apreciação da violência, aterrorizar as pessoas divulgando a barbárie como sendo algo exterior à sociedade em que vivemos e apresentar as instituições policiais, pena de morte e outras formas extremas de repressão como solução, imobiliza os indivíduos na frente das telas num show sem limites. Aumentar o medo nas pessoas para facilitar o domínio é método empregado com sucesso no transcurso da história. O mede da crise global, que parece eterna e sem saída, precisa ser exorcizada a todo instante com elementos do cotidiano que mexam fundo no imaginário e transforme a imagem-mentira em última verdade.

A população por séculos, disciplinada a ferro, encontra-se aprisionada agora a “verdade” dos meios de comunicação que é a mentira-verdade produzida pelo poder. O Estado, como parte do poder e beneficiário deste espetáculo, em momento nenhum usará suas prerrogativas para mudar o caminho que vem trilhando esses meios, é só observar como a polícia colabora ativamente na produção de certos programas. Fazer diferente seria negar sua lógica e abrir mão de promover os órgãos que concentram as forças das armas e reprimem em defesa do estabelecido. São eles a razão do Estado.

A crise que se arrasta dissolve os limites éticos aceitáveis, mesmo para uma sociedade como a nossa, onde qualquer recurso é válido desde que garanta o deles. A mentira da mídia não é diferente da mentira daqueles que venderam farinha de trigo em cápsula como remédio para câncer, denunciados em show televisivo. São parte de um mesmo mundo com regras iguais: acumular a qualquer preço enquanto for possível, melhor ainda se na concorrência destruir o outro. E isso a imprensa faz com muita técnica. Sua capacidade de manipulação, seu poder de fogo nas sociedades democráticas faz dela cortejada dama pelos outros poderes. Hoje, mais velha e mais cruel, na defesa dos interesses vigentes invade as casas sem pedir licença, brigando, xingando, destruindo, prendendo, matando... paralisando pelo terror.

sábado, maio 27, 2006

A Miragem do crescimento econômico


Os analistas econômicos têm saudado nas últimas semanas o “vigor” da recuperação americana. Todos indicadores analisados por essas figuras são positivos, sendo exceção à criação de novos postos de trabalho. Como a economia americana é a grande locomotiva, presume-se que os vagões europeus e asiáticos começam a decolar, puxando o resto da economia mundial. Por outro lado, esses mesmos analistas, dizem que a Europa anda resmungando pelos cantos, contra a política americana de desvalorização do dólar para aumentar as exportações e reduzir a ociosidade da sua indústria. Dizem que a inversão de papéis dos EUA, de grande sorvedouro de mercadorias e capitais de todo mundo para país exportador, levará, fatalmente, a retração econômica da Europa e da Ásia, com conseqüências imprevisíveis para os demais Continentes. Para complicar ainda mais, fala-se que o imenso déficit externo dos EUA, só pode ser coberto com os fluxos de capitais advindo dos superávits das exportações européias e asiáticas, que de quebra ajuda a inflar a bolha de ações, imóveis e títulos, alimentando o efeito riqueza e o mercado interno americano.

Desse imbróglio podemos tirar algumas conclusões. Se a indústria americana de bens de consumo encontra-se ociosa e carente de novos investimentos apesar dos enormes subsídios governamentais, o aumento das exportações e o crescimento da industria armamentista em torno de 45% com a guerra do Iraque, aparentemente são os responsáveis pelo crescimento da economia americana nos últimos trimestres. Talvez, nesse momento, o consumo interno não tenha o papel que lhes querem atribuir alguns desses analistas, e um indicador importante para isso é que as taxas de emprego continuam de ladeira abaixo. Uma outra questão: o consumo americano, sustentado pelo capital fictício depende, em grande parte, dos fluxos de capitais europeus e principalmente asiáticos, utilizados nas compras de notas do tesouro e outros ativos. Ora, uma redução dos superávits dessas regiões em função do aumento das exportações e redução das importações pelo EUA, inibe os fluxos desses capitais e, conseqüentemente, os gastos dos consumidores, repercutindo negativamente na situação interna americana e na cobertura déficit comercial. Quando se mexe de um lado o desequilíbrio esparrama-se para os outros, rápido e perigosamente. Limitando uma fonte importante de combustível do consumo interno e de equilíbrio nas contas, a locomotiva americana pode parar bruscamente. Os vagões europeus e asiáticos, emperrados há um bom tempo, sentirão o tranco e correm o risco de sair dos trilhos.

Na busca de um crescimento a qualquer preço e com a proximidade das eleições, o governo dos Estados Unidos tem pressionado fortemente Pequim e outros países, para que tomem medidas que possam valorizar suas moedas, reduzindo com isso, as exportações para o mercado americano. O obstáculo está no fato de que a quase totalidades das empresas exportadoras instaladas na China são americanas e japonesas que “terceirizaram” parte de sua produção pelo mundo afora como política de redução de custos, forçadas pela predadora concorrência global. Medidas como essas poderiam afetar os capitais que daí estão fluindo para ativos americanos, agravando mais ainda a situação interna e a administração do déficit comercial.


Fala-se em profundo endividamento das famílias e das empresas estadunidense. A circunstância em que se encontra o governo que para cobrir o déficit fiscal do setor público de mais 4%, resultante dos cortes de impostos beneficiando os ricos, da freada na economia e dos gastos para movimentar a colossal máquina de guerra, deve elevar o endividamento aos céus. Li recentemente um resumo do estudo de um economista norte-americano, que mostra que os preços das ações estão bem acima dos lucros e que relação histórica preço/lucro era de 14 para 1 para as 500 maiores empresas americanas. Em 2003 a média dessa relação atingiu 33 para 1, chegando a mais de 180 para 1 em algumas empresas mais audaciosas. Ou seja, a bolha financeira continua se expandindo tanto quanto o Universo, inflada pela crise do valor. O que até agora vazou do seu conteúdo etéreo com a queda das ações, foi uma simples brisa do capital fictício. Haverá choros e ranger de dentes quando em sua contração, os ventos ao escaparem da bolha atingirem a velocidade dos tufões, desmanchando tudo que na terra ou no mar encontrava-se aparentemente sólido.


Rall

07.09.2003


quinta-feira, maio 25, 2006

Fome Zero: o reconhecimento da impossibilidade de se criar empregos como o apregoado

Interessante discussão essa de como devem ser distribuídos os sobejos da sociedade produtora de mercadorias com os excluídos. Uns defendem a prestação de contas com notas fiscais escritas talvez em folhas de bananeiras ou em papel de embrulho, o único disponível para limpar a bunda brasileira nesses fins de mundo. Não sendo assim a esmola vira cachaça, alegria dos pobres. Outros que a esmola deve ser dada à mãe, essa sim, cuida dos filhos! A pobreza da polêmica, alimentada pela imprensa, é maior que a miséria dessa gente. Mas serve para esconder uma outra realidade: a impossibilidade de se criar novos empregos, principal promessa de campanha do atual governo. E quem acha que o setor de serviços dá conta do recado, que vai absorver os esconjurados pela indústria e suas novas tecnologias, veja o que traz a Folha de São Paulo em matéria sobre emprego em São Paulo publicada em 29.01.2003 na secção economia: “Serviços em baixa-Pela primeira vez desde 1985, quando foi iniciada a série histórica da evolução da taxa de desemprego do Dieese/Seade, o setor de serviços registra fechamento de postos de trabalho. Em 2002, foram eliminadas cerca de 8.000 vagas, o que rompe o ritmo de crescimento no setor, que no biênio 2000/2001 contratou 194 mil.”
Evita-se discutir essa realidade porque discuti-la é por em xeque a sociedade do trabalho. Mas já se ouve pela imprensa algumas vozes suplicantes, defendendo uma nova política industrial de incentivos á industria que utiliza mão-de-obra intensiva, ou seja, aquelas indústrias ditas nacionais que estão pedindo água por não serem mais competitivas no mercado globalizado. Afinado com essa postura está a nova direção do BNDS, que sonha transformar o banco em hospital das massas falidas. O melhor é transformá-lo numa grande UTI, pois vamos ter muitos pacientes em estado terminal. Mas como salvar estes pacientes? Ligando tubos de sucção à sociedade e transferindo recursos para o nosso moribundo paciente. Voltamos à política dos anos 70 que transformou o Estado num grande protetorado de apaniguados que enchiam os bolsos e deixavam para trás todo tipo de geringonça imprestável. Só que na luta feroz dos capitais, o que hoje é hegemônico não vai ceder fácil e, pela imprensa, mostram o seu poder de fogo. Seus “especialistas” começam a espalhar que emprestar dinheiro para indústria de ponta tudo bem, é empregar corretamente o dinheiro público e do trabalhador com retorno garantido. Agora, arrancar dinheiro da sociedade com mais impostos para queimar com grupos falidos, não senhor! E a tensão resultante de interesses díspares se acentua...
Mais recentemente, dia 12.02.2003, a Folha Cotidiano publicou resultado de uma pesquisa feita pelo Centro de Estudos da Metrópole e Prefeitura de São Paulo sobre a favelização no Município de São Paulo. A matéria diz que a Cidade ganha uma favela a cada oito dias e que 74 pessoas por dia são empurradas ao barraco prometido. Enquanto a população da Cidade cresceu 8% na última década a das favelas aumentou em 30% no mesmo período. E aí Ministro Grazino, os pau-de-araras modernos que vão ampliar o número de favelas e reagir com violência a violência a que foram submetidos já não saem do Nordeste, são paulistanos mesmos descartados pela sociedade como objetos sem valor para o mercado. Esse movimento dos postos de trabalho que se fecham em direção às favelas que se multiplicam só tende aumentar e deve ser semelhante nos demais centros urbanos. As declarações preconceituosas e racistas contra os nordestinos, mostram que esse Ministro não entende que a grande movimentação de contingentes humanos nas décadas passadas do campo para cidade e do nordeste para o sudeste era resultado de duas situações: da fome de trabalho da indústria no pólo mais dinâmico do País e da expulsão do excedente humano do campo para cidade com a chegada da monocultura e do capital agro-industrial. A luta dos trabalhadores e a conseqüente extensão dos direitos sociais ao campo, aceleraram o processo de modernização da produção agrária. No Nordeste, ingrediente seca, com sua industria de latifúndios, entra como um elemento a mais porém não determinante dessa tragédia. Se o objetivo dessa política de distribuir esmola é segurar o homem no campo está fada ao fracasso, pois não tem mais o que segurar. Mas o que de fato interessa ao espetáculo é ganhar tempo nos distraindo com nossa própria miséria.

RALL

05.03.2003

quarta-feira, maio 24, 2006

A esquerda moderna


“O mundo ideal é uma mentira inventada para
despojar a realidade do seu valor, da sua
significação, da sua veracidade.”
Nietzsche.


É burlesco ver como o PT defende as reformas ditas neoliberais. Não que elas não sejam necessárias para dar uma folga à sociedade do trabalho e a seus desesperados defensores. Até pode haver um certo crescimento econômico, mas criar novos postos de trabalho... ta longe. O mais estranho é que seus chefes alem de o tempo todo fazer mea-culpa por suas posições passadas dizem que quem mudou foi o Brasil. É claro, desde a primeira greve do ABC nos anos setenta ao momento atual, onde se pede paciência à população em desespero, muita coisa mudou. Mas fogem a percepção as raízes dessas mudanças. Daí o fascínio em ‘aprofundar’ o que está aí como saída para crise, pois a análise que se faz não permite talvez outras opções sem maiores riscos.

E o Estado, a vaca sagrada da esquerda cada vez cada vez mais perdida? De suas tetas já não jorra tanto leite, mas aumenta em proporção geométrica os que imploram pela sua bondade.

As empresas rejeitam pagar a conta, clamam contra os impostos que dizem pesados e por isso sonegam e são perdoadas. Bradam como solução uma reforma fiscal que as desonerem. Exigem ainda mudanças na CLT que precarize o emprego e, se possível, não garanta nenhum direito aos que teimam trabalhar. Para os abandonados pela disciplina do trabalho que rejeitam morrer de fome, os presídios estão abertos para lembrá-los dos seus deveres e educá-los na delinqüência. Quando soltos serão caçados, presos ou abatidos como animais ferozes, testando assim o poder disciplinar das instituições modernas. Da previdência nem se fala: lugares para bons velhinhos são os asilos. Talvez lá sobrevivam às torturas com os restos das aposentadorias, se não forem antes chamados pela Divina Providência.

Os analistas de plantões já falam na necessidade de um crescimento de no mínimo 4% para as economias gerarem novos postos de trabalho. Logo os cálculos serão refeitos para 6, 10... %, ou um crescimento econômico sem sinal de empregos. Aterrorizados com a economia paralisada e o emprego em queda livre, nas rodas secretas já se fala em redução da jornada de trabalho para, num passe de mágica, ajudar a criar os dez milhões de empregos prometidos. Mas, antes disso, veremos a rede de proteção social desmantelada pelos seus defensores, pois, como dizem os senhores do poder: o déficit da seguridade social é o grande entrave para um novo ciclo de acumulação.

O que eles e seus aliados não entendem é que um dos grandes paradoxos dos tempos atuais, o enorme potencial produtivo da revolução micro-eletrônica, vem gerando, ao contrário do apregoado, um mar de miséria que transborda no equador e invade revolto com suas águas turvas a beleza americana e a antes estável Europa, que não se resolve dentro da modernidade, com medidas "reformistas" e muito menos com o discurso antiimperialista, mofado pelo tempo e de cunho autoritário.

Ir além da modernidade, romper com os grilhões que nos prendem e nos escraviza ao mundo fetichizado das relações mercantis e com as formas hierarquizadas e burocráticas das organizações privadas e estatais que vampirizam as energias criativas dos indivíduos e depois os descartam como um bagaço imprestável, exige mais do que o espetáculo do poder que pelo encantamento busca nos paralisar.

O vazio do valor atinge em cheio as cabeças da esquerda que não sabe pensar em horizontes que transcendam os limites da sociedade do trabalho. No poder não podiam ser diferentes. Então, por que tantos surpresos senhores?
Rall
12.06.2003