domingo, julho 14, 2013

As manifestações no Brasil e a crise do capitalismo

Rall

As manifestações de rua têm sido explicadas comumente como sendo protestos por mais democracia, ou seja, participação direta do povo nas decisões de governo. Aqui no Brasil, fala-se também na não polarização da política, pela tendência do partido que está no poder fazer amplas alianças em nome da governabilidade, que termina mascarando os interesses divergentes da vida real. Com isso os partidos estariam renunciando representar os segmentos sociais em troca da proximidade e benefícios do poder. Numa aliança sem oposição, blindam o sistema contra o movimento social, visto como intruso e desestabilizador dos interesses partidários. Os indivíduos, inseridos na diversidade social, não se sentindo representados levam as ruas suas demandas e contestam os partidos, os sindicatos e outras instituições. É assim que o movimento vem sendo de um modo geral olhado. Sem pretensão de querer esgotar a matéria, algumas questões merecem ser consideradas além da aparência imediata.

A primeira, por que esse apagar das diferenças na política partidária? Estará relacionada com a forma de como a política é desenvolvida aqui? Ora, a redução da distância entre os partidos não é um fenômeno brasileiro, vem sendo observado em todo mundo. É só ver as alianças na Itália, aonde o maior partido de esquerda, outrora o maior partido comunista do Ocidente, se junta a triste figura de Berlusconi para governar. Antes eram considerados inconciliáveis. Nos outros países, Alemanha, Inglaterra, França, Japão e EUA, só para citar alguns mais conhecidos, prevalecem um bipartidarismo de fachada. Apesar dos discursos, as diferenças não são impactantes quando olhamos a longo prazo as políticas dos governos de distintos partidos. A não polaridade observada aqui prevalece também lá, mesmo com os partidos não se aliando formalmente ao se revezarem no poder. Se polaridade na política é entendida como a possibilidade de mudanças reais, as diferenças, mesmo nas margens partidárias, são imperceptíveis para esmagadora maioria da população.

A segunda, como os partidos se comportam frente ao Estado ao assumir a função de governo? Antes de qualquer ação efetiva, os partidos se deixam encantar pelo poder do grande Leviatã. Dependendo da cor da bandeira digerida, o monstro disforme estende os seus tentáculos à esquerda ou à direita, não importa. Continua, porém em marcha batida sem se preocupar como é alimentado. Não existe outro Estado que não o Estado Moderno capitalista que se constrói e se metamorfoseia na sua relação contraditória com o todo social. Quando no poder o discurso ideológico dos partidos de esquerda é estraçalhado ao se confrontar com essa brutal realidade. E ao insistirem nele, o que aparentava coerência quando oposição soa dissonante e degenerado. A tendência é uma rápida perda da credibilidade. No atual estágio de dissolução do capitalismo, transformam-se em zelosos administradores dos interesses do capital. Não podia ser diferente, pois um não sobrevive sem o outro.

Quando o capitalismo atinge o limite absoluto, as instituições criadas para garantir o funcionamento dessa forma social passam a não responder, seja na condução da economia, seja para mitigar os efeitos desastrosos sob as condições de vida. Daí a percepção, ainda que difusa e não de todo consciente, de que os partidos políticos, os sindicatos, a justiça, a infraestrutura, o transporte, a educação, saúde e outros setores que desempenham as chamadas funções de Estado, não mais funcionem ou funcionam precariamente. O discurso ideológico que quer separar o Estado do mercado não enxerga que ambos são partes da mesma totalidade, a sociedade produtora de mercadorias. Foram construindo-se e redefinindo-se nos momentos de bonança e crise, numa relação íntima, mesmo nos momentos em que o primeiro parece soberano e ganha certa autonomia. A separação formal que se faz é uma abstração, pode levar partidos e movimentos ao auto-engano, acreditando no Estado enquanto um ente que pode se descolar das relações capitalistas e fazer a revolução. 

Indicadores de que o capitalismo enquanto modo de produção de "valorização do valor” (Marx) como fim em si mesmo, falha em seu objetivo em função da revolução tecnológica que racionaliza trabalho, levando a uma progressiva redução da substância social do valor, é a necessidade crescente de endividamento das empresas, pessoas, estados e a geração em grande volume de capital fictício pelo mercado e pelas políticas de estímulo a economia. Com o espasmo da crise em 2007/2008(1), os estados que teoricamente deveriam zelar pelas finanças, ultrapassam todos os limites e passam a imprimir dinheiro sem nenhuma relação com a produção de riqueza. Conclui-se então, que os juros artificialmente baixos, o endividamento, as bolhas e os outros produtos da especulação financeira como fontes de geração de dinheiro sem substância, já não eram suficientes para manter a economia artificialmente em movimento e financiar as contas públicas. 

A crise estrutural do capitalismo é sentida pelos sujeitos de diversas formas, independente da inserção social. Os melhores informados e bens posicionados nas instituições  e empresas passam então a administrá-las em função de interesses próprio, fazendo com que estas passem a girar em torno destes. As formas de pagamentos por bônus aos executivos que não se consegue regular, como prêmio por desempenho, é um exemplo de como se tende a desconsiderar os riscos quando se trata de defender esses interesses. Os negócios privados incrustados no aparelho de Estado, quando convertidos em escândalos pela grande imprensa, manifestam bem a dimensão da crise. A  indignação dos punidos, quando muito raramente tem que pagar por envolvimentos, mostra o quanto está naturalizada essa ralação. Reagem como se lhes tivessem usurpado algum direito e como se perguntassem por que eles se todos fazem a mesma coisa. Quanto a isso não deixam de ter razão. A morte do aparente “homem público burguês”, sem deixar memórias da sua efêmera passagem, é mais uma prova de que as instituições criadas para dar sustentação ao capitalismo e mediar a feroz competição, entraram em colapso com a crise global e estimula todo tipo de comportamento.

Nos momentos mais agudos das lutas por reivindicações específica das classes ou grupos sociais, o Estado coloca-se na condição de guardião da ordem, mas simultaneamente, através de setores especializados, procura criar condições para que a energia liberada reforce a forma social. A indústria cultural, principalmente a mídia televisiva, agindo em sintonia com outros aparelhos no controle social, busca transformar protestos em espetáculos, onde desfilam para o consumo de passivos espectadores bandidos (os cognominados de vândalos) e mocinhos, como visto nas manifestações mais recentes. Para ficar mais emocionante, liberaram seus atores para compor linha de frente dos que eles queriam transformar em mocinhos. É preciso separar o espetáculo midiático ideologizado a serviço do sistema do que de fato se quer nas ruas, para melhor entender o que se passa.

O conflito entre o discurso que procura dar forma à falsa consciência e a realidade dos fatos é percebido e têm levado as pessoas espontaneamente as ruas que, muitas vezes, além das reivindicações concretas, se manifestam com desaprovações moral. Este nexo entre as instituições em crise e a crise de acumulação do capital com seus efeitos colaterais no social, é um fato real e não moral que precisa ser discutido e desvendado pelo movimento. Portanto, qualquer saída que busque  reforma do instituído, que não discuta a possibilidade de construção de um mundo diferente do totalitarismo do mercado e de opções totalitárias do Estado, é pura ilusão. Os políticos  para se manterem no poder, já tomaram a dianteira e discutem em seus partidos, no executivo e no parlamento mudanças para que tudo continue como está. No entanto, o retumbante fracasso da manifestação “chapa branca” organizada e paga pelas Centrais Sindicais e seus partidos, mostra o que já se sabia: há muito ficaram para traz e agora foram suplantadas pelo movimento espontâneo que tomou as ruas. A ponte que essas entidades e tantas outras achavam que faziam entre os movimentos sociais e o poder, amortizando com manobras as lutas quando lhes interessavam, foi definitivamente rompida, o que deverá dificultar a adesão a qualquer coisa que venha ser aprovada por se ter ouvido a “voz da rua”.

(1) A retração da economia e a destruição de empregos
14.06.2013

Um comentário:

António Maria disse...

Brasil: “...o retumbante fracasso da manifestação “chapa branca” organizada e paga pelas Centrais Sindicais e seus partidos, mostra o que já se sabia: há muito ficaram para traz e agora foram suplantadas pelo movimento espontâneo que tomou as ruas”.

No caos português, as centrais sindicais, o PCP e o Bloco, e parte do PS têm aderido aos movimentos 'espontâneos' na esperança de os capturar. Mas a verdade é que não tem sido fácil. Basta a ver como do BE ao PCP, passando pelo PSD, todos fogem das suas próprias cores — em geral, curiosamente, para o azul. PCP e Bloco apostam no azul, António Costa, no verde alfacinha. Em suma, a burocracia partidária foge da sua própria identidade, tal é a urticária que causam numa parte crescente da população.