domingo, setembro 07, 2014

O crédito, as bolhas e a crise do capitalismo

Rall

“Estamos vendo bolhas de ativos em todos os lugares. Os mercados de ações estão em níveis recorde de alta. Bônus livres de risco estão em níveis recordes de baixa. O custo de fazer hedge ou cobertura está em níveis recorde de baixa, como indicado pelo Vix, o chamado 'índice do medo".

“O ponto principal é que, longe de ter havido um processo normal de desalavancagem depois de um grande boom de crédito, os níveis da dívida do setor privado não financeiro estão hoje 30% mais elevado do que estava em 2007. Como proporção do PIB, aumentaram 20%. Longe da desalavancagem, a situação é pior hoje do que estava antes. O segundo ponto é que em 2007 as economias avançadas tinham todos esses problemas, mas podiam olhar para os mercados emergentes como parte da solução. O que ocorreu nos últimos seis ou sete anos nos países emergentes é que, com o boom de crédito que houve lá, eles não são mais parte da solução. Eles são parte do problema. Nesse sentido o problema global se tornou materialmente pior.” (William White).*                                                                                                                                                            
Sete anos após o estouro da bolha que atingiu em cheio o mercado imobiliário e o setor financeiro, resvalando para toda economia, o capitalismo continua sem rumo. A abundância de dinheiro fictício gerado pelos mecanismos de compra pelo Fed de títulos da dívida pública e papéis privados lastreados em hipotecas de créditos podres, transbordou dos países desenvolvidos para os emergentes na forma de capital especulativo, que ao lutarem contra a apreciação de suas moedas mantem os juros baixos, alimentando as bolhas. É no setor imobiliário desses países aonde mais claramente se evidencia a formação de bolhas nos últimos anos. Nos países desenvolvidos a especulação tem se concentrado mais nas bolsas. No entanto, com dinheiro farto, mesmo sem substância, nenhum ativo escapa a formação de bolhas, não importa onde estão ancorados.

Outros sinais importantes da proximidade de novos abalos é o comportamento dos preços nas economias dos diversos países. Enquanto na Europa, Japão e EUA, o esforço dos bancos centrais é para que essas economias não caiam na deflação, o que se observa nos emergentes é exatamente o contrário, a inflação em franca ascensão. Excetuando os EUA, cuja economia se mantém pela política monetária “ultraexpansionista”, que já dá sinais de esgotamento além dos riscos, a maioria dos países europeus e Japão caminham para uma nova rodada recessiva, alguns se debatendo contra a “estagdeflação”, o que tem levado os bancos centrais da Europa e Japão adotarem estímulos monetários mais ousados, inclusive a possibilidade de aumentarem a compra de bônus soberanos. No outro lado do mundo o que assombra é estagflação, com muito desses países entrando em recessão com inflação alta, como o Brasil, outros já tecnicamente quebrados, como a Argentina. O que aparenta ser contraditório, inflação e deflação, na verdade são manifestações de um mesmo fenômeno: da crise de acumulação do capital e dos efeitos colaterais resultantes de medidas monetárias expansionistas com as quais pretende-se conter a crise.

Com a circulação de dinheiro fácil e barato gerado nos bancos centrais quando compram em grande escala dívidas públicas e privadas, visando aliviar as empresas do excesso de alavancagem e financiar os estados, o que se viu de 2007 para cá foi um aumento global das dívidas do setor privado, incluindo-se aí as famílias, e a explosão das dívidas dos estados. Em 2007 quando se iniciou o estouro da bolha de ativos, principalmente de imóveis, houve paralização temporária do crédito. Mas, facilitado pelas rodadas de "afrouxamento quantitativo" e juros basicamente negativos, o crédito se recompôs rapidamente e prosseguiu sua trajetória ascendente, seja no setor público ou privado. Não podia ser diferente num cenário aonde a economia real não consegue gerar valor e o único meio de manter as coisas como estão é simular a acumulação da riqueza abstrata produzindo capital fictício e antecipando, pelo crédito, a realização de mais-valia futura, cuja possibilidade de formação é remota.

No entanto, apesar de crescente a oferta de crédito é desigual no tempo e espaço. Nos EUA aonde a alavancagem das empresas chegou a patamares muito altos, houve certa contenção pela freada brusca da economia e paralisação dos investimentos, mas não pelo estabelecimento de uma nova lógica capaz de inverter esse processo como vaticinavam alguns analistas. Nos países em desenvolvimento, aonde o endividamento era considerado baixo quando comparado  com os países do centro, o crédito cresceu rapidamente nos últimos anos sob pressão dos fluxos de capitais externos e pela redução dos juros internos a níveis antes não atingidos, muitas vezes como meio para se protegerem das ruínas do capital especulativo. Podemos afirmar que no capitalismo em seus estertores, o crédito tende crescer ao infinito, e na outra ponta as dívidas, na medida em que se intensifica a crise do dinheiro enquanto expressão da crise do "trabalho abstrato" e do valor, ao contrário do que deseja os defensores da desalavancagem. As bolhas de ativos aí formadas, que se expandem proporcionalmente as montanhas de dívidas que vão se acumulando, tendem a ser mais destrutivas quando explodirem a medida que a crise avança(1).

Por outro lado, a contabilidade dessas dívidas transformou-se num emaranhado inextricável, parecido com uma peça de ficção sem começo nem fim, cuja complexidade ininteligível só aumenta aos olhos de espectadores atônitos. As saídas para crise formuladas a partir de reformas estruturais das economias, tão vigorosamente defendidas pelos que criticam o monetarismo puro, como a liberalização do mercado de trabalho e de produtos, tem fôlego curto e não são capazes de salvar a penca de bancos e empresas zumbis espalhadas pelo mundo que se mantém em pé alimentadas por dinheiro fictício. Com a revolução tecnológica impulsionada pela feroz competição que tende aumentar com o baixo crescimento, baratear a força de trabalho via liberalização do mercado de trabalho não faz diferença, mesmo porque o desemprego estrutural que cresce com o aumento da produtividade já faz esse serviço com eficiência.

Os conflitos regionais, subproduto da crise e da disputa de poder entre as grandes potências, onde a barbárie sem limites é venerada por atores sectários, e os duzentos milhões de desempregados que rondam o mundo, retroalimentam a crise geral da sociedade capitalista que não é só econômica, mas social em sentido amplo. Os riscos de uma depressão que possa atingir profundamente a economia global cambaleante e as finanças do Estado, impossibilitando manobras artificiais como o "afrouxamento quantitativo" e outras formas de gerar dinheiro fictício que busca adiar o colapso da valorização ao transfundir a economia, são reais. As evidências mostram que a crise tende aumentar, esgarçando o tecido social e as instituições que lhe dão sustentação, pondo em risco a convivência entre humanos se não for possível o surgimento de uma consciência social crítica, suficientemente abrangente, que questione o capitalismo e enseje sua abolição.

*William White, ex-economista-chefe do Banco de Compensações Internacionais (BIS) e presidente da Comissão de Revisão e Desenvolvimento Econômico da OCDE, em entrevista ao Jornal Valor Econômico, SP, em 21/07/2014.

(1) O segundo grande espasmo da crise

07.09.2014

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