Rall
Com a concretização da prisão dos condenados pelo chamado
escândalo do mensalão, forma de pagamento dos políticos por fora pelo poder
público ou pelos grupos privados com interesses específicos, tão antiga quanto
às instituições parlamentares deste País, causou certo encanto e,
consequentemente, a ilusão de que era possível fazer alguma coisa para mudar
essa realidade. Fatos recentes como a
prisão de um grupo de fiscais da Prefeitura de São Paulo, seguida de revelações
dos vários caminhos percorridos pelo dinheiro da corrupção, mostra que nada
mudou.
Prisões e julgamentos que tem acontecido em casos como
esses, tem animado alguns grupos que levantam a bandeira da moralidade pública e
da necessidade do Estado se reformar para de fato ser o provedor do “bem comum”.
Apesar dos discursos inflamados e das boas intensões (o inferno está cheio, já
se dizia), os obstáculos vindo de todos os lados, principalmente dos partidos
políticos, são enorme para qualquer tentativa de reforma do Estado que torne
mais transparente à contabilidade das entradas e saídas dos recursos públicos.
Isso por um motivo muito simples: o dinheiro é o fim último que move
automaticamente do mais pacato ao mais ousado cidadão na sociedade capitalista,
e os meios para adquiri-lo são cada vez mais suspeitos.
Esse quadro tende a se agravar nos momentos de agudização da
crise de acumulação pela qual passa o capitalismo. As dificuldades de “valorização do valor” (Marx)
na produção real leva o dinheiro circulante ser cada vez mais desprovido de sua
substância, o “trabalho abstrato” (Marx). O dinheiro que em movimento não mais
aporta em sua totalidade na produção real por falta de rentabilidade, busca
espaços no mercado mundial e nos estados aonde seja possível à multiplicação.
Utiliza-se para isso de artifícios financeiros como especulação, bolhas,
pirâmides, ou simplesmente é impresso em volume já mais visto pelos órgãos
garantidores, os bancos centrais, sem nenhuma relação com a riqueza material
produzida.
O dinheiro sem substância assim gerado (capital fictício), é
uma espécie de anti-dinheiro que ao juntar-se com o dinheiro que expressa o
“trabalho abstrato” realmente efetivado a partir da produção real, tende, à
medida que essa mistura explosiva cresce, acelerar a crise do “modo de produção
baseada no valor” (Marx) com os sucessivos colapsos financeiros, acompanhados
de grandes desvalorizações do dinheiro, impactando negativamente na economia
real. Dos anos 80 até os tempos atuais, quando o capitalismo parece ter
atingido o “limite interno absoluto” (Kurz) em função da Terceira Revolução Industrial
racionalizadora de força de trabalho pela automação da produção, assiste-se uma
sucessão desses colapsos e grandes destruições na economia e de vidas.
Mas, como a produção de mercadorias pela economia real, que
pode ser dirigida para atender ou não necessidades humanas, precisa ser mantida
e expandida para que a paralisia da produção não leve o capitalismo a falência
total, parte do dinheiro sem substância é, pois, aí reciclado sem produzir
mais-valia suficiente para valorização do capital. Mas, como a finalidade
última da produção não é satisfazer necessidades e sim gerar mais dinheiro, os
gestores da economia só veem como saída novas disponibilidades financeiras para
cobrir os déficits seja do Estado que para se financiar depende da valorização
em crise, seja para o consumo das famílias e das empresas. Para isso crédito é
facilitado com juros baixos e alongamento dos prazos; através da formulação de
novos produtos financeiros pelo mercado, bolhas são estimuladas e os governos
continuam se endividando, permitindo uma liquidez alta com o objetivo de manter
a produção de mercadorias sem limites. Portanto, instalou-se um círculo vicioso
que tende a empurrar os mercados e os governos a criar num crescente,
mecanismos que aumentam o volume de capital fictício para compensar a
desvalorização em alta.
Só o Banco Central dos EUA, além dos juros negativos, vem
imprimindo pondo em circulação 80 bilhões de dólares por mês, sem nenhuma
relação com o que é de fato produzido para estimular o consumo e a produção. O
imenso aporte de recurso disponibilizado pelo Estado no início da crise
financeira em 2008 tinha-se mostrado insuficiente. Frear o crescimento
econômico como querem alguns ambientalistas e teóricos de um capitalismo menos
compulsivos, é como cortar a jugular do capital, o que seria uma contradição em
termos para os que defendem essa posição, mas são incapazes de formular uma
crítica radical a esse modo de produção.
Apesar da reação recente da economia americana tida como
positiva, vem de analistas insuspeitos ao sistema (Summers, Krugman e outros) a
retomada da hipótese de “estagnação secular” dos países desenvolvidos, em
particular dos EUA e Japão. Essas análises, muito relacionadas com as dificuldades
de recuperação do mercado de trabalho, não explicam porque as economias
estagnaram. Para isso teriam que por o dinheiro que hoje circula nas diversas
formas em seu devido lugar: vê-lo como manifestação do “trabalho abstrato” e,
ao mesmo tempo, a obsolescência deste. Tais análises, por descreverem algumas
árvores e não a floresta, terminam justificando o aprofundamento das políticas
que se ancoram no capital fictício para manter a economia em aparente
movimento. Temos como exemplo disso as medidas de intensificação da política de
“afrouxamento monetário quantitativo” no Japão e a timidez com que o Banco Central dos
EUA fala em reduzir a injeção de dinheiro na economia.
É nesse contexto de crise das categorias fundamentais do
modo de produção capitalista, aonde se incluem mercado, Estado e o dinheiro,
que devem ser analisados os desvios de recursos públicos para alimentar
interesses privados e político-partidários. As ilusões de um Estado diferente, “provedor
do bem comum” em uma sociedade produtora de mercadorias, é uma ficção
regressiva que pode alimentar desejos autoritários de corrigir os “desvios
humanos”(1). A crítica à consciência obnubilada e ao agir do “sujeito automático”,
presos ao fetichismo da mercadoria, do capital e das instituições que lhes dão
sustentação, para ser efetiva deve ser categorial se se quer alcançar a raiz dos
problemas que incomodam. Isso não significa que as reivindicações mais
imediatas pela sobrevivência e a ocupação dos espaços das cidades não sejam
legítimas. A dificuldade está em articular essas reivindicações à crítica
radical da forma-valor, do modo de produção capitalista e do patriarcalismo.
(1) O mensalão, o Estado e as ilusões da esquerda
15.01.2014
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