segunda-feira, outubro 25, 2010

Tropa de elite e a degradação do Estado

Rall

O filme do diretor José Padilha, busca mostrar a violência que grassa os aparelhos de segurança do Estado, associada a uma corrupção crônica que se estende ao Executivo, Legislativo e, menos evidente, ao Judiciário. O filme se desenrola contando a história das milícias do Rio de Janeiro, que surgem a partir da relação de militares com o crime organizado. Observam que os criminosos montaram nas favelas uma eficiente empresa que se ocupa não só da venda de drogas, mas também do monopólio da distribuição de gás, venda de ligações clandestinas de TV a cabo e de outros lucrativos comércios. Os policiais de um batalhão, não satisfeitos com o valor da propina paga pelo tráfico, resolve tomar uma favela e assumir o comércio dito informal, expulsando os traficantes e instituindo um Estado paralelo, com cobrança de “impostos” para garantir a segurança do cidadão.

Não demora e o achado que promete “segurança” à população e muito dinheiro para os envolvidos, chega ao núcleo do poder político (1) cujos membros se aliam as milícias e passam a ordenar a ocupação das favelas pelas tropas de elites, deixando o território livre para instalação de bandos armados, acobertando o crime organizado gestado nas corporações militares. Os políticos ganham com a repercussão manipulada dos fatos e com a divisão do butim. Apesar de o filme tentar retratar a situação particular do Rio de Janeiro, capta uma realidade mais geral em movimento, não restrita só aos Estados brasileiros, mas que hoje atinge todo o mundo globalizado. Daí uma das qualidades do filme como obra cinematográfica.

A crise pela qual passa a sociedade capitalista tem evidenciado o quanto Estado e mercado se complementam inclusive na bandalheira. Os trilhões de dólares e outras moedas transferidas pelos estados em todo mundo para cobrir os prejuízos do mercado com papéis podres e pirâmides financeiras mostra que a lógica é a mesma, só muda a forma: fazer dinheiro, mesmo que fictício, sem importar-se o custo humano e social.

A concorrência que se acirra com a intensificação da crise de acumulação real de capital, assume na sociedade burguesa uma dimensão espantosamente destruidora, incapaz de ser contida em seus excessos por um Estado cada vez mais contaminado por essa lógica. Portanto, a degradação do Estado que o distancia de sua forma “ideal” é o reflexo das taras de uma sociedade em profunda crise que atingem todos seus interstícios. Estado e mercado, que são partes do todo que constituem a sociedade burguesa, apesar de em alguns momentos passarem por violentas tensões resultantes das contradições inerentes, não vivem um sem o outro e alimentam-se mutualmente em sua miséria, movidos pelo fetiche do dinheiro venerado por todos. A loucura do mercado financeiro não está desacoplada da economia real como muitos desejam e (ou) como tenta convencer outro filme, “Wall Street 2: O dinheiro nunca dorme” , mas tem na crise de “valorização do valor” da economia real sua causa fundamental.

Como sair disso e nos livrar da barbárie? Com certeza não através do Estado burguês, que se degenera em grupos mafiosos violentos e nem sequer consegue mais administrar a crise, como deseja uma esquerda que se alimenta de literatura e conceitos mofados no tempo e é incapaz de romper o arcabouço ideológico ao qual estão amarradas suas fantasias. Se a crítica social não quiser sucumbir ao totalitarismo da mercadoria que nos sufoca, tem que dirigir suas baterias às formas existentes, abrindo frestas em todas as frentes para que se enxerguem outras formas de organização em formação capaz de superar o estado de coisa em que vivemos, antes que seja tarde demais para se alcançar uma verdadeira comunidade humana.

Esperamos que o próximo filme da série, o Capitão Nascimento, apesar das expectativas, não seja transformado no herói capaz de realizar a limpeza ética do Estado, que regenerado, coloca-se pronto para extirpar pelo uso da força as pontas podres do sistema. Pois essa coisa estranha e fora de controle chamando “sistema”, é a expressão de força de um Estado capitalista cada vez mais armado contra os indivíduos e a possibilidade de uma sociedade solidária, planejada e construída a partir das reais necessidades humana. Seria melhor manter nos filmes vindouros a crítica negativa aberta do que buscar um final feliz, que anestesia com imagens espetaculares a possibilidade de reflexões.

(1) Da doce ilusão à consentida mentira

25.10.2010

domingo, outubro 10, 2010

A crise aproxima-se perigosamente do câmbio

Rall

As medidas dos governos em defesa dos mercados domésticos que tem levado a variações cambiais, sinalizam que a unidade em torno do enfrentamento da crise começa a se desfazer com a esperada retomada do crescimento econômico derrapando nas dificuldades estruturais. A chiadeira é geral: reclama-se da China que administra burocraticamente o yuan, garantido uma certa estabilidade frente a uma cesta de moedas, principalmente ao acompanhar as seguidas desvalorizações do dólar. Fala-se na necessidade de valorização do yuan permitindo um equilíbrio nos preços dos produtos das exportações chinesas que vem arruinando as indústrias dos países em desenvolvimento e dificultando a retomada da produção nos países desenvolvidos ao inundar o mundo com mercadorias baratas. Oferecem como sugestão que a China estimule o mercado interno de tal forma que o mesmo seja capaz de absorver as mercadorias que vão para fora e também o excedente de países desenvolvidos. Sugestão que não precisa de um observador muito atento à economia chinesa para entender a impossibilidade da criação desse tão cultuado mercado local nas condições dadas.

Tal desejo dos “formuladores” das políticas econômicas dos países do centro não se restringe a China, é estendido a todos os países ditos emergentes com saldo na balança comercial. Acredita-se que chegou a hora de se inverter a lógica dos circuitos deficitários, ou pelo menos de se buscar um equilíbrio mais justo nas transações comerciais corrigindo-se as distorções. É nesse contesto que devem ser analisadas as atuais ondas desvalorização do dólar.

A trajetória de queda do dólar no tempo deve-se a um conjunto de variáveis complexas. Está relacionada com a crise do dinheiro em geral que se torna mais evidente nesta moeda pelo papel que exerce de equivalente geral, cuja única âncora que lhe garante esta função com o fim da paridade ouro/dólar, passa a ser poder político/militar americano. Quando se analisa a história do dinheiro após a segunda guerra mundial, o dólar na função de dinheiro universal expressa melhor a desvalorização das moedas levada a efeito pelo aumento da produtividade, que diminui o “tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias (Marx)”, induzindo a corrosão do valor e a consequente queda dos preços dos produtos. Enquanto “mercadoria rainha”, o dinheiro tende a acompanhar a desvalorização do valor no tempo independente das variações conjunturais. Nos mercados financeiros o dinheiro que rende juros, autonomizado em relação à produção, perde seu “status” e é transacionado como uma vulgar mercadoria. Empacotado com papéis de cores diferentes atende do mais simples ao mais refinado gosto dos investidores. Dessa forma, o dinheiro ao se multiplicar descolado do processo real de valorização gera capital fictício. Como o preço das mercadorias que oscila ao sabor das conjunturas, nas relações de mercado o dinheiro flutua em variadas situações.

São, portanto, diversas as circunstâncias que levam as moedas a flutuarem umas em relação às outras, independente da queda do valor das mercadorias pelo aumento da produtividade. Em relação ao dólar pode-se afirmar que estão relacionadas com os interesses americanos enquanto superpotência econômica e militar. Na situação atual, a fraqueza e a tendência à deflação da economia americana, mostram-se como importantes elementos que pressionam o dólar para baixo. Mas são as medidas que buscam conter esta situação, como o afrouxamento monetário com emissão sem precedente de dólar para salvar bancos e conglomerados empresariais, o principal responsável pela perda de força dessa moeda. A inflação do dólar por esse mecanismo, se por um lado busca salvar empresas e reativar o crédito, por outro repercute nas importações e exportações americanas com as alterações no câmbio.

As mudanças cambiais nos EUA repercutem em todo mundo por ser este País o maior sorvedouro de mercadorias do planeta vindas praticamente de todos os cantos da terra e por ter o dólar à função de moeda universal. Quando o dólar recua em relação às demais moedas, os produtos americanos tornam-se mais competitivos e as exportações tendem aumentar. Esse fato, porém não é verdadeiro para países que mantém sua moeda desvalorizada artificialmente por estar atrelada ao dólar como acontece com a China. Nos câmbios flutuantes, os governos geralmente superavitários, tendem a se protegerem comprando dólar e formando reservas gigantescas nessa moeda, praticamente não remuneradas que se desvalorizam. O excesso de dinheiro sem substância emitido, não absorvido pela produção e consumo nos países do centro, vem fluindo para países da periferia do capitalismo, agravando os desequilíbrios cambiais com a valorização das moedas e formando bolhas nesses mercados que não deverão se sustentar por muito tempo.

O Brasil é o exemplo mais contundente desse fenômeno. Apesar da defesa que se faz dos bons “fundamentos da economia” (o que se quer dizer com isso numa economia globalizada?) quando se trata de exportação, observa-se que na relação entre bens industriais e produtos primários o pêndulo vem se deslocando no sentido dos últimos(1). A perda de competitividade da indústria brasileira relacionada com a baixa produtividade, infraestrutura precária, agravada agora com os desequilíbrios cambiais salta aos olhos. A saída via desvalorização do Real por medidas administrativas ou pelo previsto déficit na balança comercial nos próximos anos, pode se mostrar insuficiente para enfrentar a enxurrada de mercadorias vindas de toda parte do mundo, principalmente da China. Com os ânimos acirrados os interesses nacionais tendem prevalecer e fica difícil um acordo global para o câmbio como assim desejam o FMI e alguns governos.

Na China dois fenômenos manifestam-se com maior visibilidade. Pelo fato do yuan estar atrelado ao dólar, a queda deste leva a desvalorização da moeda chinesa em relação as demais, deixando seus produtos arrasadoramente competitivos quando comparados com de outros países. As mercadorias da “fábrica do mundo”, como assim é chamada a China, invadem mercados e desestruturam parques industriais em todo mundo, principalmente nos países menos desenvolvidos, compensando com isso a redução das vendas para os EUA. Por outro lado, as empresas americanas, apesar de expandir suas vendas externas favorecidas pelo câmbio, não conseguem competir internamente com os produtos chineses devido a desvalorização administrada do yuan e aos baixíssimos salários pagos aos trabalhadores, fórmula utilizada pelo governo chinês para compensa a baixa produtividade de suas indústrias e que o leva a resistir em aplicar medidas de correção do câmbio via valorização da moeda. A redução da entrada de mercadorias chinesas nos EEUU deve-se fundamentalmente ao encolhimento desse mercado com o estouro da bolha financeira.

Reverter esse quadro das relações comerciais sino-americana onde os interesses se imbricam e se conflitam, não será fácil. E entre os maiores interessados para que nada mude, além do Governo chinês estão às empresas do Japão, da Europa Ocidental e, principalmente, dos Estados Unidos instaladas na China com destino certo para suas mercadorias. Num imbróglio deste, com as trocas internacionais enfraquecidas pela redução do consumo e onde todos forçam a barra para colocar o excedente de sua produção no quintal do outro mesmo a preços módicos, a possibilidade de graves crises cambiais em países onde as moedas continuam se valorizando em relação ao dólar é uma questão de tempo. Tudo vai depender dos próximos lances na busca de acomodação dos interesses da “fábrica do mundo” e do maior mercado consumidor do planeta.

Se chegarem a um acordo é possível que a conta seja paga pelos outros. Os países mais pobres amargarão com os maiores prejuízos. Mas se o confronto se acirrar e o dólar continuar em queda livre, acompanhado de perto pelo yuan, o mercado mundial pode travar ainda mais as trocas com medidas protecionistas, com sérias repercussões na já cambaleante economia. Aí o salto não será em W como querem alguns analistas, mas num precipício aonde a escuridão não permite que se enxergue onde pousar.

(1) A tendência da indústria brasileira

10.10.2010