domingo, abril 17, 2011

Regulanção e desregulação, a serviço de quem?

Rall

A aplicação da lei Dodd-Frank aprovada pelo Congresso Americano, que propõe regulamentar o mercado financeiro nos EUA, acirra o debate entre defensores e contra a dita lei. No entanto, regulamentar o mercado financeiro globalizado, cuja complexidade é incapaz de ser compreendida em sua totalidade pelos operadores desse mercado, pelos funcionários das agências regulatórias e também pelos legisladores, como tem mostrado a crise em processo, será difícil mesmo se a lei fosse aplicada a todos os mercados. Torna-se menos provável seu sucesso quando sabemos que a legislação está restrita a um único País, embora seja este o maior detentor mercado financeiro do mundo.

Regulação pode funcionar em determinadas situações, mesmo que não plenamente, quando aplicada de forma restrita em defesa do capital e sua lógica, contra as intervenções governamentais consideradas indevidas e abusos de grupos privados que possam afetar a rentabilidade do capital do setor regulamentado como um todo. As empresas, de um modo geral, aceitam investir quando através de legislação tem a garantia de que as regras dos mercados serão respeitadas pelos governos. Essa é a regulação possível. No entanto, como mercado financeiro e o Estado no momento atual do capitalismo funcionam como motores da geração de capital fictício necessário à manutenção simulada da economia real, a aplicação de normas que se contraponham a essa tendência, ou não pega, pois logo vai se encontrar meios capazes de facilitar a fuga das restrições impostas, ou jogará o mundo em depressão pelo corte do suprimento do capital sem substância que mantem a economia respirando nas três últimas décadas. O mais provável é a legislação não firmar-se ou ser mutilada de tal forma na regulamentação para sua aplicação que nenhum impacto será sentido pelo mercado financeiro.

No fundo os legisladores que aprovaram a lei Dodd-Frank, não entendem que a desregulação financeira impelida pelas leis cegas do mercado, pois fim a uma legislação que já não dava conta de uma nova realidade. O “entulho”, como assim gostavam de chamar os neoliberais às leis que aparentavam dificultar que o novo aflorasse com toda força, já tinha sido superado pela dinâmica da realidade que se impunham ao mercado. Que realidade era essa? O chamado capital fictício, ou seja, todo capital que não é gerado pela real “valorização do valor” (Marx), sempre esteve presente desde os primórdios do capitalismo. Com a crise do trabalho produtivo, gerador de mais-valia, o capital fictício, antes tido como um evento efêmero que era purgado nas crises cíclicas do capitalismo, a partir dos anos 80, com a revolução tecnológica passa a ser determinante na manutenção do movimento, mesmo que falseado, da engrenagem de acumulação de capital.

Os neoliberais foram os primeiros, ajudados pela crença fanática em relação ao poder da “mão invisível do mercado”, a levantarem a bandeira da desregulação. A direita moderna compreendeu “institivamente” a incapacidade de a regulação dar conta da realidade que emergia, e utilizou a favor de seus objetivos conceitos e valores que lhe convinham. Equivocara-se ao querer varrer qualquer coisa que cheirasse interferência do Estado na economia, como se este fosse um ente estranho que se contrapunha ao bom funcionamento das leis do mercado. Descobrira tardiamente numa experiência dolorosa com os espasmos da crise em 2008/2009, que o Estado era a outra face da sociedade capitalista, não existia só o festejado mercado. Sem nenhum escrúpulo, e rapidamente se desfazendo de todo o arsenal teórico quando se vira com dólar furado no bolso, estendeu ansiosamente o pires para as gordas esmolas daquele que tanto combatia.

O entusiasmo pelo mercado, no ápice do período neoliberal, alastrara-se aos sociais democratas, socialistas e aparentados. A esquerda desorientada inventava moda como a “Terceira Via” e até cunhara um termo “socialismo de mercado”, uma forma acanhada de dizer ao que tinha renunciado. Com a queda do muro de Berlim decretara-se o “fim da história” e o mercado já absoluto passou a ser eterno. A arrogância neoliberal, que arrasta consigo uma social-democracia resmungona e sem norte, triunfou até ser abalada no segundo ato.

A hegemonia neoliberal, agora reconhecendo a importância do Estado que antes tanto combatia e desprezava, refez alguns conceitos para se adaptar aos novos tempos, mas continua em frente acreditando ter a solução para crise. E a esquerda “tradicional”? Essa ainda atarantada segue acreditando em fórmulas do passado como meios de superação da crise. Com o dedo em riste, fica a apontar para o suposto inimigo e a dizer-lhe que estava com a razão em sua defesa do Estado, como se este estivesse acima de qualquer suspeita e distante da contaminação pelo vírus mercantil. Exige medidas regulatórias que possam encabrestar o sistema financeiro. Não consegue entender que são essas amarras rompidas pelo mercado e pelo Estado com novas regulamentações, que garantem há muito a formação do capital fictício que alimenta a economia real em crise.

Enquanto não se buscar saída além dos limites de funcionamento da sociedade capitalista, a crise persistirá ou na forma de estouro de bolhas no mercado ou de endividamento insustentável dos Estados. Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e outros Estados já assinalados como os próximos da lista de socorro financeiro são a ponta do iceberg de uma crise bem maior das dívidas “soberanas”. A tendência é o encurtamento do tempo entre um espasmo e outro da crise, jogando um número cada vez maior de indivíduos na miséria, até o rompimento total do tecido social já dilacerado. Aí a guerra civil ou entre nações pode surgir como uma enorme possibilidade se não se encontrar caminhos para uma sociedade emancipada do fetiche do valor, capaz de romper a “gaiola de ferro” (Weber) em que nos metemos. Rebeliões como as do Oriente Médio e do Norte da África, que ainda buscam saída nos limites da sociedade capitalista, podem cair na armadilha onde todos mudam para continuar como estar. Quando descobrirem o engodo, há risco de confrontos violentos como vazão às frustações misturadas a um tipo de motivação religiosa que explora o desespero com fins políticos.

17.04.2011